Acórdão nº 72/21 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução27 de Janeiro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 72/2021

Processo n.º 1458/2017

Plenário

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

(Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro)

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, representante do Ministério Público junto deste Tribunal (doravante referido como o recorrente), interpôs a fls. 2046/2047 o presente recurso para o Plenário, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), na sequência da prolação pela 3.ª Secção do Acórdão n.º 134/2020 (fls. 2007/2041). Este aresto, com efeito, divergindo de múltiplos pronunciamentos decisórios anteriores do Tribunal [designadamente dos Acórdãos n.os 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018 (referimos aqui os indicados pelo recorrente no requerimento de interposição)] “[julgou] inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal [lenocínio], por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, conjugadamente […]”.

1.1. Admitido o recurso a fls. 2048, foi este motivado pelo recorrente a fls. 2050/2051, remetendo para o teor das contra-alegações que havia apresentado, neste mesmo processo, na fase que antecedeu a prolação do Acórdão n.º 134/2020 (tratou-se, nesse enquadramento processual, de recurso interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, decorrente de uma decisão de não acolhimento da questão de inconstitucionalidade suscitada pelo ora recorrido).

O Ministério Público, nessas contra-alegações, recordando jurisprudência reiteradamente proferida pelo Tribunal Constitucional nos últimos 16 anos, na sequência do Acórdão n.º 144/2004, concluíra que “[a] norma do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, na qual se prevê e pune o crime de lenocínio, não viola o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional”.

O ora recorrido não respondeu à motivação do recurso do Ministério Público.

1.2. O relator originário do processo apresentou memorando propondo a decisão do recurso no sentido afirmado no Acórdão recorrido. Todavia, na discussão travada no plenário, apurou-se um sentido decisório contrário ao Acórdão n.º 134/2020, transferindo-se o relato da posição do Tribunal para o primeiro juiz integrante da maioria de decisão formada no plenário, seguindo a ordem de precedências para o presente ano (artigo 79.º-D, n.º 5, da LTC).

Cumpre, pois, apreciar e decidir o recurso.

II – Fundamentação

2. Está em causa, nos presentes autos, a questão da inconstitucionalidade da norma incriminatória do lenocínio contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal (“[q]uem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer, ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.”). No Acórdão recorrido, foi proferida decisão no sentido da sua inconstitucionalidade, por oposição a outras decisões do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.os 694/2017, 90/2018, 178/2018, entre muitos outros, adiante referidos), nos quais a mesma norma não foi julgada desconforme à Constituição.

A questão da inconstitucionalidade da referida norma penal (e, anteriormente, da norma correspondente do artigo 170.º, n.º 1, do mesmo Código, na numeração anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro; estando em causa, fundamentalmente, a descrição típica do lenocínio introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro) foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, num número particularmente expressivo de arestos, numa linha decisória iniciada com a prolação do Acórdão n.º 144/2004 – posteriormente a este, v., designadamente, os Acórdãos n.os 196/2004, 303/2004, 170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 654/2011, 203/2012, 149/2014, 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018, 178/2018, 160/2020 e 589/2020 –, sendo todas essas decisões no sentido da não inconstitucionalidade e, recentemente, no Acórdão n.º 134/2020 (trata-se da decisão aqui recorrida), no sentido da inconstitucionalidade.

Destina-se o presente recurso, precisamente, a superar a apontada divergência, sendo o recorrente, pois, face aos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, parte legítima.

2.1. No Acórdão n.º 144/2004 – verdadeiramente a decisão matriz desta problemática na jurisprudência constitucional (que podemos definir como a constitucionalidade da incriminação do lenocínio, na descrição típica introduzida pela Lei n.º 65/98) –, o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma (ao tempo) constante do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal [“[q]uem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de atos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos” (a autonomização da prática de atos sexuais de relevo, “caiu” do tipo do lenocínio com a reforma do Código Penal corporizada na Lei n.º 59/2007, sendo intuitivo que a materialidade subjacente ao trecho suprimido não deixava de estar contida no conceito de prostituição)].

Importa recordar, nos seus traços mais expressivos, os fundamentos dessa decisão do Tribunal de há 16 anos:

“[…]

5. O ponto de vista que a recorrente apresenta ao Tribunal Constitucional consubstancia ‑se no seguinte:

– os bens jurídicos protegidos pela norma em crise são, em primeira linha, ‘sentimentalismos transpessoais’, valores de ordem moral e não bens pessoais como a liberdade e autodeterminação sexual;

– não sendo a prostituição em si punível, incriminar ‑se a atividade comercial ou lucrativa que tem por base a prostituição ou ‘atos similares’ corresponde a privar os cidadãos de exercer uma atividade profissional por imposição de regras morais.

A pergunta a que importa responder é, portanto, a de saber se fere alguma norma ou princípio constitucional a incriminação das condutas que constituem a factualidade típica do artigo 170.º.

6. Não se terá, aqui, de responder à questão geral sobre se o Direito Penal pode, constitucionalmente, tutelar bens meramente morais, questão que não pode ser resolvida sem o esclarecimento prévio do que se entende por bens puramente morais e que não pode deixar de tomar em consideração que há valores e bens tidos como morais e que relevam, inequivocamente, no campo do Direito. A relação entre o Direito e a Moral ou o Ethos tem sido objeto de uma controvérsia muito importante, sendo uma das questões fundamentais da Filosofia do Direito. Com efeito, desde a tradição liberal radicada em Stuart Mill (On liberty, 1859) ou mesmo do pensamento de Kant (Metaphysik der Sitten, 1797), em que o Direito se situa apenas no plano do dano ou do prejuízo dos interesses ou da violação dos deveres (externos) para com os outros até às conceções de uma total fusão entre o Direito e a Moral, em que se reconhece que o Direito tem legitimidade para impor coletivamente valores morais (assim, por exemplo, no pensamento anglo ‑saxónico, Patrick Devlin, em The Enforcement of Morals, 1965, em nome da manutenção da identidade da sociedade), tem ‑se mantido acesa a discussão. Apesar das duas posições extremas – a da separação absoluta entre o Direito e a Moral e a da total coincidência entre Direito e Moral – é amplamente aceite que o Direito e a Moral, embora a partir de perspetivas diferentes, fazem parte de uma unidade mais vasta (assim, Arthur Kaufmann, Recht und Sittlichkeit, 1964, p. 9, e, de modo introdutório à questão, J. Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1990, p. 59 e ss.).

Assim, tanto quem procure em valores morais a legitimação do Direito, como quem acentue a distinção entre Moral e Direito, reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens normativas [partindo de conceções diversas sobre o Direito, mas coincidindo neste último ponto, cf. Radbruch, Filosofia do Direito […]; e Kelsen, Teoria Pura do Direito […] – este último, apesar da separação radical entre Direito e Moral, não deixa de reconhecer que o Direito pode tutelar valores morais, sem que, por isso, Direito e Moral se confundam; também Hart o reconhece em “Positivism and the Separation of Law and Morals”, Harvard Law Review, 1958; ver ainda, do mesmo autor, Conceito de Direito […]]. Mesmo as posições mais favoráveis à autonomia do Direito não negam que possam existir valores morais tutelados também pelo Direito, segundo a lógica deste e, por força dos seus critérios (sobre toda a problemática da relação entre a Moral e o Direito, veja‑se, por exemplo, Arthur Kaufmann, Rechtsphilosophie, 2ª ed., 1997, Kurt Seelmann, Rechtsphilosophie, 1994). Porém, questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber se a norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não suscetíveis de proteção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.

Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspetiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf., sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando ‑o como ‘fenómeno social total’ e, depreende ‑se, um fenómeno de exclusão, José Martins Bravo da Costa, ‘O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição’, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, n.º 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 –...

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