Acórdão nº 58/21 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Maria José Rangel de Mesquita
Data da Resolução22 de Janeiro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

3.ª Secção

Relatora: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Contas, em que é recorrente A., S.A. e é recorrido o Ministério Público, foi pela primeira interposto recurso (cf. fls. 312-332), ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada pela sigla LTC), do Acórdão daquele Tribunal n.º 13/2019, proferido em Plenário da 1ª Secção, em 29 de maio de 2019 (cf. fls. 203-303), que julgou improcedente o recurso interposto do precedente Acórdão n.º 29/2018, mantendo a decisão de recusa de visto ao designado «Aditamento ao Contrato de Subconcessão do Algarve Litoral», celebrado entre a A., S.A., enquanto subconcedente, e a B., S.A., enquanto subconcessionária, de que resultou o «Contrato de Subconcessão Alterado» (visando este proceder à alteração do prévio «Contrato de Subconcessão», que teve uma versão originária objeto de recusa de visto, nos termos do Acórdão n.º 168/2009, e uma versão reformada, objeto de concessão de visto através da Decisão n.º 612/2010).

2. Na Decisão Sumária n.º 418/2020 (cf. fls. 369-407), ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decidiu-se não conhecer do objeto do recurso (cfr. II – Fundamentação, 5. e ss.).

3. Notificada da Decisão Sumária n.º 418/2020, a recorrente apresentou reclamação para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, com o seguinte teor (cf. fls. 411-451):

«A., S.A. (doravante, “A.” ou “Reclamante”), tendo sido notificada da Decisão Sumária n.º 418/2020, proferida pela Senhora Juíza Conselheira Relatora em 1 de Setembro de 2020, pela qual foi recusada a admissão do recurso interposto contra o Acórdão n.º 13/2019, proferido pelo Plenário da 1.ª Secção do Tribunal de Contas, no Processo de Fiscalização Prévia n.º 685/2018, e com ela se não conformando, vem, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 78.º-A da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (“LTC”), interpor

Reclamação para a Conferência,

o que faz nos seguintes termos:

A) Cumprimento dos pressupostos processuais de recurso para o Tribunal Constitucional previstos no artigo 75.º-A da LTC

1. A ora Reclamante, sublinhando o elevadíssimo respeito por este Venerando Tribunal Constitucional e pela Decisão Sumária aqui impugnada, não pode deixar de sublinhar que com ela se não pode confirmar.

E isto porque todos os pressupostos processuais de recurso para o Tribunal Constitucional a que alude o artigo 75.º-A da LTC, se encontram inequivocamente cumpridos no caso concreto.

2. Para a concretização dos fundamentos da presente Reclamação, deve recordar-se que, num primeiro plano, para o efeito do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC, são três as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada.

2.1 A primeira norma consiste – de acordo com a própria formulação do Tribunal a quo, que é alheia à Reclamante – “no complexo normativo constituído pelos artigos 5.º, n.º 1, alínea c), 44.º, n.º 1, 46.º, n.º 1, alínea b), da LOPTC” (isto é, a Lei n.º 98/97, que aprovou a Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, na redação em vigor), quando interpretadas essas normas no sentido de atribuírem ao Tribunal de Contas uma “jurisdição” que inclui o poder de alterar a força do caso julgado das suas decisões anteriores e reformular ou destruir parcelas de decisões que hajam transitado em julgado.

No dizer expresso do Acórdão recorrido n.º 13/2019 – a que a Reclamante também é alheia –, a “autoridade de caso julgado” “poderia ser objeto da delimitação ou recorte” que decorreria dos poderes de pronúncia do Tribunal de Contas (cfr. página 84), com o alcance que adiante melhor se explanará.

2.2 Em segundo lugar, suscita-se a inconstitucionalidade do mesmo complexo normativo, quando interpretado no sentido de que, graças à jurisdição do Tribunal de Contas, de natureza reservada, nenhum outro Tribunal – nem mesmo um Tribunal Administrativo à luz do disposto no n.º 3 do artigo 212.º da Constituição – pode emitir uma sentença que afete a “inderrogabilidade” de uma decisão de recusa de visto que pretendeu proibir um ente público de realizar um pagamento previamente inscrito num contrato mas que tem como fundamento uma obrigação compensatória extracontratual.

No dizer do Acórdão n.º 29/2018, proferido pela Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas, que o Plenário da 1.ª Secção inteiramente subscreveu pelo Acórdão n.º 13/2019 (em resposta ao recurso que a A. dele interpôs), se esse Tribunal julga, em decisão transitada em julgado, que são ilegais quaisquer “designadas compensações” destinadas ao pagamento de obrigações que têm fonte legal ou extracontratual, então é indiferente que o decisor público receba uma cominação de outra autoridade para proceder a esse pagamento, ainda que essa autoridade seja um Tribunal. Esse pagamento não pode ser realizado e aquela cominação não pode ser obedecida, pela simples razão de que “a reserva de jurisdição do TdC não pode ser desrespeitada por quaisquer outras entidades públicas, a qual tem uma raiz no artigo 214.º da Constituição, sem embargo do reenvio dinâmico para o legislador ordinário também aí determinado”, o que implica “a inderrogabilidade, por quaisquer acordos ou decisões (ainda que de tribunais arbitrais), dos mecanismos de controlo (e respetivos efeitos) do Tribunal de Contas” (cfr. páginas 54-55 do Acórdão n.º 29/2018).

Na verdade, “a especificidade do atual regime legal do TdC, pela própria conformação normativa das suas competências (cfr. artigo 44.º, n.º 3, da LOPTC), determina que o controlo exercido por este Tribunal no âmbito da fiscalização prévia tenha de envolver, necessariamente, a formulação de juízos próprios da jurisdição administrativa (e em aplicação de legislação de direito administrativo ) – o qual gera um aparente conflito de jurisdições, mas que, no entanto, se apresenta com um alcance bem mais comedido do que se poderia pretender” (cfr. página 89 do Acórdão n.º 13/2019).

2.3 Em terceiro lugar, suscita-se a inconstitucionalidade do mesmo complexo normativo, quando interpretado no sentido de que a jurisdição (alegadamente reservada ou exclusiva do Tribunal de Contas) tem o alcance de impedir um ente público de pagar uma indemnização decorrente de vinculação constitucional e legal, resultante dos artigos 2.º, 62.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, da Constituição, se esse pagamento for proibido por uma decisão de recusa de visto.

3. Para o efeito do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 75.º-A da LTC, as normas constitucionais que se consideram violadas pelas referidas interpretações normativas consistem nas seguintes:

3.1 No caso da primeira interpretação normativa, é violado o princípio da intangibilidade do caso julgado, decorrente do n.º 2 do artigo 205.º da Constituição, o qual determina a consolidação no ordenamento jurídico de uma decisão jurisdicional transitada em julgado, impedindo o fracionamento da autoridade do caso julgado e a possibilidade de um Tribunal rever uma parcela dessa decisão e reformular a parcela que de forma criativa autonomizou.

3.2 No caso da segunda interpretação normativa, a norma violada consiste no n.º 3 do artigo 212.º da Constituição, em cujos termos “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” – o que inclui os litígios resultantes de obrigações extracontratuais de natureza indemnizatória que impendam sobre entidades públicas.

3.3 No caso da terceira interpretação normativa, as normas violadas consistem no complexo formado pelos artigos 2.º, 62.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, da Constituição, que impõem que os entes públicos, sujeitos aos princípios da boa fé, da tutela da confiança e do respeito pelo direito fundamental de propriedade privada, sejam responsáveis pela compensação a pagar pela afetação de direitos patrimoniais privados que resulte de um comportamento contrário às legítimas expectativas antes criadas na esfera dos privados que consigo se relacionam, não podendo tal compensação de fonte constitucional e legal (portanto, extracontratual) depender da anuência de uma pronúncia judicial que incide sobre a legalidade financeira de obrigações de tipo contratual.

4. Para o efeito do disposto na segunda parte do n.º 2 do artigo 75.º-A da LTC, a ora Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade nas suas alegações de recurso para o Plenário da Secção do Tribunal de Contas (cfr., em especial, as conclusões xiii) a xv), xx) a xxiii) e xxiv), respetivamente).

B) Enquadramento necessário das questões de constitucionalidade suscitadas no recurso

5. Feita esta clarificação das normas inconstitucionais aplicadas pelo Tribunal a quo e das normas-parâmetro por ele violadas, cumpre agora explicitar os motivos pelos quais, muito respeitosamente, a A. não pode concordar com a Douta Decisão Sumária n.º 418/2020 e se encontra convicta de que a presente Reclamação merece provimento.

Inicialmente, as três questões de constitucionalidade acima suscitadas ressaltaram de forma clara – aliás, em frases que surpreendem pela forma explícita como o Tribunal de Contas se não coibiu de manifestar a sua posição – no primeiro Acórdão n.º 29/2018, proferido pela Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas. Sucede que, confrontado com a inconstitucionalidade das interpretações normativas aplicadas pela...

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