Acórdão nº 145/21 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução19 de Março de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 145/2021

Processo n.º 298/2020

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente o A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante, “LTC”), do acórdão proferido por aquele Tribunal em 19 de fevereiro de 2020, que negou provimento ao recurso interposto da sentença proferida pelo Juízo Local Criminal de Valongo – Juiz 2, da Comarca do Porto, confirmando assim a condenação do ora recorrente pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 69.º, n.º 1, alínea c), e 348.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena principal de oitenta dias de multa e, acessoriamente, na pena de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, pelo período de quatro meses.

2. O requerimento de interposição do recurso tem o seguinte teor:

«1.º

O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, 1 b) da Lei do Tribunal Constitucional, por o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto ter aplicado norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.

2.º

O recorrente dispõe de legitimidade para interpor o presente recurso, pois suscitou a inconstitucionalidade da norma no recurso ordinário para o Tribunal da Relação do Porto, de modo processualmente adequado, nos termos do artigo 72.º, 2 da LTC.

3.º

Nos termos do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, a norma que o recorrente reputa como inconstitucional, e pretende que o Tribunal aprecie, reporta-se ao artigo 69.º, 2 do Código Penal, quando interpretada como não permitindo a restrição da proibição de conduzir a uma categoria determinada de veículos motorizados, e/ou não permitir a exclusão dessa proibição a condução pelo arguido da categoria de veículos por ele utilizada no exercício da sua profissão, por violação do disposto nos artigos 30º, 4, 47º, 1, 36.-, 5 e 18º, 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa,

4.º

O recorrente também considera que da norma contida no artigo 69.º, 2 do Código Penal resulta que foi vontade do legislador permitir ao julgador, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, que a proibição abranja todos os veículos a motor, ou excluir dessa proibição alguma categoria de veículos, pois senão o legislador teria dito, pura e simplesmente, que abrange todos os veículos, e retirava a terceira pessoa do singular do presente indicativo do verbo poder do teor da norma.

5.º

O aqui recorrente está privado do direito de conduzir automóveis pesados de mercadorias, que constitui o objeto do seu contrato de trabalho, como efeito necessário da sua condenação por um crime de desobediência simples, com fundamento no artigo 69º,1 c) e n.º 2 do Código Penal.

6.º

Esta sanção acessória tem como consequência para o recorrente a perda do seu direito profissional, como motorista assalariado, atividade que constitui a base do seu sustento próprio e do seu agregado familiar, direito que é constitucionalmente garantido (artigos 30º, 4 e 47.º da Constituição da República Portuguesa), pelo que ao deliberar pela condenação do recorrente na proibição de conduzir veículos pesados de mercadorias, que constitui o objeto da sua atividade profissional de motorista assalariado, em consequência de condenação pelo crime de desobediência, a alínea c) do nº 1 do artigo 699 do Código Penal é inconstitucional, por violar os preceitos contidos nos artigos 30.º, 4 e 18º, 2 da Constituição da República Portuguesa.»

3. Determinado o prosseguimento dos autos, foram as partes notificadas nos termos e para os efeitos previstos no artigo 79.º da LTC, com a especificação de que o «objeto do presente recurso é integrado pelo artigo 69.º, n.º 2, do Código Penal, interpretado no sentido de que, em caso de condenação pela prática do crime de desobediência a que alude a alínea c) do respetivo n.º 1, não é permitido restringir a proibição de condução a uma determinada categoria de veículos motorizados ou excluir dessa proibição a condução da categoria de veículos utilizada pelo arguido no exercício da sua atividade profissional de motorista».

4. O recorrente produziu alegações, concluindo da seguinte forma:

«I – O objeto do presente recurso é integrado pelo artigo 69.º, 2, do Código Penal, interpretado no sentido de que, em caso de condenação pela prática do crime de desobediência a que alude a alínea c) do respetivo n.º 1, não é permitido restringir a proibição de condução a uma determinada categoria de veículos motorizados, ou excluir dessa proibição a condução da categoria de veículos utilizada pelo arguido no exercício da sua atividade profissional de motorista.

II – Na interpretação normativa do preceito contido no n.º 2 do artigo 69.º do Código Penal, nos termos efetuados no douto Acórdão recorrido, ao deliberar não ser permitido que a restrição de condução de veículos motorizados possa ser restrita a uma determinada categoria de veículos, pelo facto de a Lei n.º 7/2000, de 27.07 ter suprimido a parte final “ou de uma categoria determinada”, bem como da interpretação conjugada dos artigos 121.º do Código da Estrada e artigo 500.º do Código de Processo Penal, para sustentar a sua posição de impossibilidade de restrição da proibição de condução a veículos com motor de qualquer categoria é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 30.º, 4 da CRP.

III - A norma do artigo 69.º, 2 do Código Penal, na sua literalidade, não se nos afigura inconstitucional, porém, a entender-se o contrário, requer-se que recaia sobre a mesma um juízo positivo de inconstitucionalidade, para que as instâncias repristinem a norma anteriormente vigente, mais concretamente a Lei n.º 7/2000, de 27.07, na sua anterior redação.

IV – É entendimento do recorrente que da norma contida no artigo 69.º, 2 do Código Penal, resulta que foi vontade do legislador permitir ao julgador, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, que a proibição abranja todos os veículos a motor, ou excluir dessa proibição alguma categoria de veículos, pois senão o legislador teria dito, pura e simplesmente, que abrange todos os veículos, e retirava a terceira pessoa do singular do presente indicativo do verbo poder do teor da norma.

V – A interpretar-se a norma do artigo 69.º, 2 do Código Penal no sentido fixado no douto Acórdão recorrido, tal significa que ao Tribunal está vedado fazer uma ponderação casuística da factualidade concreta, para assim decidir se, in casu, é de restringir a proibição de condução a uma determinada categoria de veículos motorizados, ou excluir dessa proibição a condução da categoria de veículos utilizada pelo arguido no exercício da sua atividade profissional de motorista, o que colide com o disposto no artigo 30.º, 4 da CRP, pois tal proibição decorre diretamente da lei, ou, a nosso ver, da interpretação normativa efetuada pelo Tribunal recorrido.

VI – A pena acessória que impede o arguido de conduzir veículos pesados de mercadorias, no exercício da sua atividade profissional de motorista, tem como consequência a perda do direito profissional, como motorista assalariado, atividade que constitui a base do sustento próprio e do seu agregado familiar, direito que é constitucionalmente garantido (artigos 30.º, 4; 36.º, 5 e 58.º, 1 da CRP).

VII - O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado pela inconstitucionalidade das normas que impõem a perda de direitos civis, profissionais e políticos como efeito necessário e automático da condenação por certos ilícitos (a título meramente exemplificativo, vejam-se os Acórdãos números 156/86, 165/86, 187/86, 255/87, 284/89 e 224/90), todos disponíveis na base de dados.

VIII – Como a perda de direitos civis, profissionais e políticos traduz-se materialmente numa verdadeira pena, que não pode deixar de estar sujeita, na sua aplicação, às regras próprias do Estado de direito democrático, tais como: reserva judicial, princípio da culpa, princípio da necessidade e proporcionalidade das penas.

IX – A interpretação normativa do artigo 69.º, 2 do Código Penal, que integra o objeto do recurso definido a fls. 280 dos autos, para além de violar o preceito constitucional ínsito no artigo 30.º, 4 da Lei Fundamental, também não cumpre outros normativos e princípios constitucionais decorrentes do texto constitucional, designadamente os princípios da necessidade e da proporcionalidade, por decorrência dos artigos 2.º e 18.º, 2 da CRP.

X – Não se vislumbra a correspondência entre a violação do bem jurídico autonomia intencional do funcionário, decorrente de prática de um crime de desobediência, fora do âmbito profissional, e a proibição de conduzir veículos como motor, maxime quando se tratam de automóveis pesados de mercadorias, e o recorrente exerce a profissão de motorista assalariado, necessitando impreterivelmente de poder conduzir veículos pesados de passageiros, para não ver cessado o seu contrato de trabalho, não pondo em causa a seu direito a uma existência condigna, nem o seu direito a exercer labor de motorista profissional.

XI – A admitir-se que possa haver constrição do direito de conduzir, decorrente da prática do crime de desobediência, porém, numa situação como a dos autos, em que o mesmo é motorista profissional, e necessita impreterivelmente da manutenção da autorização de condução de veículos pesados de mercadorias, da qual aufere remuneração que constitui o único rendimento disponível do seu agregado familiar, é excessivo.

XII – Em termos abstratos, numa situação como a dos presentes autos, em que o recorrente é condenado...

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