Acórdão nº 177/21 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução06 de Abril de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 177/2021

Processo n.º 305/2020

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A., SAD impugnou, junto do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), o acórdão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol de 26/10/2018, pelo qual foi negado provimento ao recurso hierárquico impróprio que interpôs e, em consequência, foi mantida a decisão de 11/09/2019, que condenou o ali recorrente em multa no valor de €765,00, pela prática de uma infração disciplinar prevista e punida pelo artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2018 (RDLPFP/2018), e em multa no valor de €2.391,00, pela prática de uma infração disciplinar prevista e punida pelo artigo 187.º, n.º 1, alínea b), do RDLPFP/2018.

1.1. Pelo TAD foi proferido acórdão, datado de 09/10/2019, que julgou o recurso improcedente.

1.1.1. O A., SAD interpôs, então, recurso jurisdicional desta última decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul, que, por acórdão de 13/02/2020, concedeu provimento ao recurso, declarando a nulidade do ato impugnado. Da respetiva fundamentação consta, designadamente, o seguinte:

“[…]

Por despacho de 26/12/2019, foi suscitada a questão da nulidade do ato punitivo proferido em 11/09/2018, e mantido pela deliberação emitida em 26/10/2018 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, por violação dos direitos de audiência e de defesa do recorrente, pois, no que concerne ao procedimento disciplinar sumário – no âmbito do qual foi proferido o referido ato de 11/09/2018 –, a norma plasmada no art. 214.º do RDLPFP 2018, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da prolação do ato punitivo, será materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, previstos nos arts. 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Vejamos, começando pela análise desta última questão.

Esta questão foi apreciada no Ac. deste TCA Sul de 10/12/2019, proc. n.º 49/19.0BCLSB (bem como nos Acs. deste TCA Sul de 10/12/2019, proc. n.º 4/19.0BCLSB, e 18/12/2019, proc. n.º 35/19.0BCLSB), com o qual se concorda, constando do respetivo sumário o seguinte:

“I – O processo sumário configura uma forma especial do processo disciplinar, regulando-se pelas disposições que lhe são próprias e, na parte nelas não previstas e com elas não incompatíveis, pelas disposições respeitantes ao processo comum, consonantemente com o previsto no art.º 213.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

II – A audiência do arguido está claramente prevista e descrita como um princípio essencial e uma formalidade obrigatória no âmbito do procedimento disciplinar comum, como decorre do estatuído nos art.ºs 236.º a 246.º do aludido Regulamento Disciplinar, subsistindo, até, diversos momentos em que o arguido, antes da emissão da decisão sancionatória, intervém no procedimento disciplinar de que é alvo, como dimana do disposto nos art.ºs 227.º, 230.º e 231.º do mesmo Regulamento.

III – Ora, constituindo o processo sumário também um procedimento disciplinar, impera assentar que tal procedimento assume natureza sancionatória e pública, o que convoca a aplicação de determinadas garantias constitucionais, por razões de similitude de essência com o próprio processo penal, mormente, as consagradas no art.º 32.º, n.º 10 e no art.º 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.

IV – A Doutrina (entre outros, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, artigos 1.º a 107.º, janeiro, 2007, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, dezembro, 2007, Coimbra Editora) e a Jurisprudência do Tribunal Constitucional são absolutamente claras na afirmação da fundamentalidade da garantia da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, decorrendo essa fundamentalidade, entre o mais, do consagrado nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição, e significando que “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas” (como declarado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, n.º 180/2014, n.º 457/2015 e n.º 338/2018).

V – Não obstante constituir um princípio essencial, assumido pelo próprio Regulamento Disciplinar, que a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência prévia pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar, a verdade é que o art.º 214.º do Regulamento exclui expressamente esta garantia no que se refere ao processo sumário.

VI – Com efeito, o art.º 214.º do Regulamento não só afasta explicitamente a audiência do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, como a própria tramitação do procedimento disciplinar sumário não permite enxertar ou acomodar qualquer ato procedimental concretizador daquela garantia constitucional, como dimana do exame do disposto nos art.ºs 257.º a 262.º do mesmo Regulamento.

VII – O que implica que o arguido apenas conhece a existência de imputações disciplinares contra si no momento em que é notificado da própria decisão disciplinar, e sem que tenha tido qualquer hipótese de esgrimir uma defesa em momento anterior ao daquela notificação.

VIII – Quer tudo isto significar, portanto, no que concerne ao procedimento disciplinar sumário, que a norma plasmada no art.º 214.º do Regulamento Disciplinar, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do ato punitivo, é materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, preceituados nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.

IX – Sendo assim, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da aludida norma vertida no art.º 214.º, na parte em que exclui e oblitera a audiência do arguido antes da promanação do ato punitivo.

X – O que conduz a que o ato punitivo proferido em 21/09/2017, e mantido pela Deliberação emitida em 10/10/2017 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol seja nulo, por violação dos direitos de audiência e de defesa da Recorrente.”

Neste aresto de 10/12/2019, escreveu-se a este propósito o seguinte:

“O primeiro labor a realizar é o que se refere ao enquadramento axiológico do procedimento disciplinar desportivo, quer na sua vertente regulamentar, quer, principalmente, na sua vertente legal e constitucional.

Assim,

Perscrutado o RDLPFP (na versão aplicável aos factos em discussão), ressalta desde logo a consagração, no art.º 6.º, de um princípio de autonomia do regime disciplinar desportivo face à responsabilidade civil, penal e contraordenacional, seguindo-se um elenco de princípios tipicamente associados ao direito sancionatório de cariz disciplinar, como sejam, os princípios da tipicidade, da irretroatividade, da legalidade, da proporcionalidade e do non bis in idem, de acordo com os art.ºs 8.º a 12.º do aludido RD. Ademais, o art.º 13.º acrescenta um conjunto de princípios fundamentais, como o da separação e independência entre as funções disciplinares instrutórias e decisórias, a garantia de impugnação administrativa, o direito de constituição de advogado por banda do arguido, os direitos de audiência e de defesa do arguido em conformidade com a densificação regulamentar, o direito ao silêncio, a liberdade de produção e utilização de todos os meios de prova, o princípio da autoridade do árbitro e a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, que sejam por eles percecionados no exercício das suas funções.

É de notar, finalmente, que o art.º 16.º, n.º 1 do RD estipula a aplicação subsidiária do disposto no Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, mutatis mutandis, no domínio da “determinação da responsabilidade disciplinar e na tramitação do procedimento disciplinar” regulados pelo mesmo RD, deixando salvaguardada a aplicação, em qualquer caso, dos princípios enumerados no referido art.º 13.º, que se sobrepõem a enformam, necessariamente, o recurso ao regime subsidiário.

No que concerne à natureza do procedimento disciplinar desportivo, incluindo a forma de processo sumário, é de realçar que o mesmo tem natureza pública, gozando de autonomia face aos procedimentos destinados à efetivação da responsabilidade penal, civil ou da responsabilidade disciplinar de direito privado, nos termos consagrados no art.º 212.º do RD.

No caso posto, verifica-se que a Recorrente foi punida com fundamento no cometimento da infração que se encontra descrita no art.º 187.º, n.º 1, al. a) do RD. De facto, aquele normativo prescreve a aplicação da pena de multa ao clube futebolístico “cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina”, mormente, mediante o arremesso de petardos, tochas e outros objetos e o proferimento de expressões insultuosas.

Saliente-se, também, que a punição da Recorrente constitui o desenlace de um procedimento disciplinar, sob forma especial, concretamente, o...

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