Acórdão nº 221/09 de Tribunal Constitucional (Port, 05 de Maio de 2009

Magistrado ResponsávelCons. Carlos Fernandes Cadilha
Data da Resolução05 de Maio de 2009
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 221/2009

Processo n.º 775/08

Plenário

Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha

Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2º, nº 3 do Decreto-Lei nº 198/95, de 29 de Julho, na redacção resultante do artigo único do Decreto-Lei nº 52/2000, de 7 de Abril, interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de demonstração da titularidade do cartão de utente, no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados.

    Fundamentou o seu pedido na circunstância de tal interpretação normativa ter sido julgada materialmente inconstitucional, no âmbito da fiscalização concreta, por violação das disposições conjugadas dos artigos 2º, 18º e 64º da Constituição, através do acórdão nº 67/07 e das decisões sumárias nºs 557/07 e 274/08.

    Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos.

  2. Fundamentação

    1. A questão que vem discutida é a de saber se é conforme ao disposto nos artigos 2º, 18º e 64º da Lei Fundamental, a exigência imposta pelo artigo 2º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 198/95, de 29 de Julho, alterado pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 52/2000, de 7 de Abril, no sentido de ser efectuada a cobrança do valor da prestação de cuidados de saúde em estabelecimento ou serviço integrado no Serviço Nacional de Saúde, quando o interessado, não tendo apresentado o cartão de identificação de utente, não tenha feito a prova, no prazo cominado naquela disposição, de que é dele titular ou requereu perante os serviços competentes a sua emissão.

      No acórdão n.º 67/2007, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade material da referida disposição, concluindo que uma norma que impõe ao utente economicamente carenciado o efectivo pagamento dos serviços clínicos prestados como mera consequência do incumprimento de um ónus procedimental ou formal, de natureza manifestamente secundária, é incompatível com o princípio da proporcionalidade e com o carácter universal e tendencialmente gratuito do Serviço Nacional de Saúde, expressão da consagração constitucional do direito à saúde, implicando a violação dos artigos 2.º, 18.º e 64.º da Constituição.

      Para assim decidir, teve em linha de conta que o regime jurídico em causa tem por consequência a necessidade do pagamento pelo utilizador dos serviços prestados, sem ter previsto a forma pela qual a interpelação para pagamento dos encargos decorrentes dos serviços prestados vem a ter lugar e sem permitir sequer a valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no incumprimento do dever acessório em questão.

      Esta jurisprudência foi depois reiterada pelas decisões sumárias n.ºs 557/07 e 278/08.

      Sendo estes os termos em que a questão se coloca, cabe efectuar antes de mais o necessário enquadramento sistemático da norma sobre a qual se impõe a formulação do juízo de constitucionalidade.

    2. O Decreto-Lei n.º 198/95 criou o cartão de utente do Serviço Nacional de Saúde, que é emitido pelos serviços competentes da administração regional de saúde da área da residência do titular (artigo 4º), e que, fora certas situações excepcionadas na lei, se destina a ser apresentado perante instituições ou serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, para efeito de prestação de cuidados médicos, requisição e acesso a meios auxiliares de diagnóstico e prescrição e aquisição de medicamentos (artigo 3º).

      Na sua redacção originária, o artigo 2º desse diploma dispunha:

      1- O cartão de identificação do utente constitui um meio facultativo, com natureza substitutiva, de comprovação da identidade do seu titular perante as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde e as entidades privadas na área da saúde.

      2- O cartão de identificação do utente é de emissão gratuita e substitui, para os efeitos referidos no número anterior, qualquer outro cartão ou documento de identificação do seu titular.

      Como se depreende ainda do preâmbulo do diploma, a instituição do cartão de utente, de emissão gratuita e natureza substitutiva, sendo idêntico aos já existentes para utentes de subsistemas de saúde, constituía uma medida de simplificação do acesso dos cidadãos ao Serviço Nacional de Saúde, sem pôr em causa os princípios da universalidade e da equidade deste Serviço, e pretendia assegurar uma mais fácil identificação pessoal nos serviços de saúde, eliminando procedimentos burocráticos e facilitando a atribuição da isenção das taxas moderadoras e o reconhecimento de situações de isenção, além de permitir uma mais adequada articulação entre o Estado e as entidades privadas legal ou contratualmente responsáveis por encargos decorrentes de prestações de saúde.

      O citado Decreto-Lei n.º 52/2000 introduziu uma única alteração a esse diploma, passando a conferir à referida disposição do artigo 2º a seguinte redacção:

      1- O cartão de identificação do utente deve ser apresentado sempre que os utentes utilizem os serviços das instituições e serviços integrados no Sistema Nacional de Saúde ou com ele convencionado.

      2- A não identificação dos utentes nos termos do número anterior não pode, em caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde.

      3- Aos utentes não é cobrada, com excepção das taxas moderadoras, quando devidas, qualquer importância relativa às prestações de saúde quando devidamente identificados nos termos deste diploma ou desde que façam prova, nos dez dias seguintes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados, de que são titulares ou requereram a emissão do cartão de identificação de utente do Serviço Nacional de Saúde.

      O objectivo da modificação legislativa, como também resulta da respectiva nota preambular, foi o de promover a generalização do uso do cartão de utente no sistema de saúde, implementando para tal desiderato duas condicionantes que são assim explicitadas:

      Esclarece-se que a não exibição do cartão não pode em circunstância alguma pôr em causa o direito à protecção na saúde constitucionalmente garantido, evitando que o problema burocrático ou administrativo da identificação do utente do Serviço Nacional de Saúde impeça a realização das prestações de saúde.

      Todavia, torna-se necessário associar consequências à não identificação do cartão e que assentam no pressuposto que o utente não identificado não é beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, associando o ónus do pagamento directo do utente pelos encargos decorrentes de cuidados de saúde, quando não se apresente devidamente identificado nas instituições e serviços prestadores ou não indique terceiro, legal ou contratualmente responsável. Esta responsabilização prática das instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde fica agora mitigada pela possibilidade de o utente se eximir da responsabilidade pelos cuidados de saúde prestados requerendo o respectivo documento de identificação.

      O Decreto-Lei n.º 52/2000 teve, pois, em vista incentivar o uso do cartão do utente pela população, passando a sancionar com a sujeição ao pagamento dos serviços de saúde prestados, a falta de prova da titularidade do direito, dentro de um prazo curto e peremptório subsequente à interpelação para pagamento, quando o interessado não tenha apresentado o cartão de identificação na ocasião da utilização dos serviços.

      Poderá assentar-se, por outro lado, sem que isso represente por agora um qualquer comprometimento com a solução do caso, no conteúdo jurídico do direito constitucional positivo que está especialmente em causa, bem como na natureza da limitação que é imposta ao exercício desse direito quando se pretenda regular legislativamente, como é o caso, o acesso ao Serviço Nacional de Saúde.

      A prestação de cuidados de saúde através dos estabelecimentos e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, entendido este como um serviço universal quanto à população abrangida, destinado a prestar ou a garantir a prestação de cuidados globais, e tendencialmente gratuito para os utentes, dá concretização prática ao direito à protecção da saúde, consagrado no artigo 64º da Constituição.

      Nesta sua vertente, o direito à protecção da saúde adquire a natureza de um direito social com um certo grau de vinculatividade normativa.

      Como tem sido já sublinhado, os preceitos relativos a direitos sociais (como outros referentes a direitos económicos e culturais) contêm normas jurídicas vinculantes que impõem positivamente ao legislador a realização de determinadas tarefas através das quais se pode concretizar o exercício desses direitos.

      Por sua vez, o grau de conformação legislativa é variável consoante o carácter mais ou menos determinado ou determinável da imposição constitucional respectiva, pelo que o legislador fica sempre vinculado às directrizes materiais que resultem expressamente ou por via interpretativa das normas que imponham, nesse domínio, tarefas específicas (Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª edição, Coimbra, págs. 397-401; no mesmo sentido, ainda Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Coimbra, pág. 471).

      Concretamente em relação à criação e manutenção de um serviço nacional de saúde, como componente do direito à protecção à saúde, constitucionalmente consagrado (artigo 64º, n.º 2, alínea a)), o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de afirmar que se trata aí de uma obrigação constitucional do Estado como meio de...

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