Acórdão nº 159/07 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Março de 2007
Magistrado Responsável | Cons. Helena Brito |
Data da Resolução | 06 de Março de 2007 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO N.º 159/2007
Processo n.º 537/99
Plenário
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
O pedido e os seus fundamentos
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O Provedor de Justiça veio, ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, requerer a apreciação e declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas no artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de Outubro.
As normas em causa, na sua versão originária, tinham o seguinte teor:
Artigo 5º
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O rendeiro tem o direito de remir o contrato, tornando-se dono da terra pelo pagamento do preço que for fixado pela comissão arbitral.
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Este preço será determinado pelo valor potencial da terra, excluídas as benfeitorias, tendo em conta o estado em que se encontrava a terra no início do contrato.
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Depositado na Caixa Geral de Depósitos o montante do preço referido no número anterior, e paga a respectiva sisa, a comissão arbitral efectuará a transferência, a favor do rendeiro, dos bens remidos.
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As certidões ou fotocópias notariais da deliberação da comissão referida no número anterior são havidas, para todos os efeitos, como escrituras públicas.
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A fundamentação do pedido é, em síntese, a seguinte:
O n.º 1 do artigo em análise cria um direito real de aquisição a favor do rendeiro, nos casos de arrendamento rural em que as terras tenham sido dadas de arrendamento no estado de incultas e se tenham tornado produtivas por acção do rendeiro.
Este direito de remição viola a garantia constitucional de propriedade privada prevista no artigo 62º da Constituição, dado que este preceito estabelece que apenas podem existir limitações ao direito de propriedade privada por requisição e expropriação por utilidade pública com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
No caso, verifica-se a ablação de um direito de um particular a favor de outro particular, não havendo qualquer utilidade pública que o justifique, dado não existirem quaisquer fins públicos mas apenas fins privados que se destinam a proporcionar ao rendeiro e à sua família o direito às benfeitorias realizadas e a evitar o seu despejo das terras.
Estas finalidades são já atingidas por outras medidas previstas no mesmo diploma: o regime da propriedade das benfeitorias (artigo 2º) e a limitação dos casos de resolução do contrato de arrendamento, por parte do senhorio (artigo 4º). Assim, a privação do direito de propriedade do senhorio, contra a sua vontade, revela-se desproporcionada face aos fins que se pretende obter.
O direito de propriedade privada tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, pelo que as restrições se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, o que não se verifica no caso.
O direito de remição do rendeiro viola quer o princípio da exigibilidade, quer o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, dado que a ablação do direito de propriedade do senhorio é excessiva em relação aos fins prosseguidos e estes podem ser atingidos por outros meios menos onerosos.
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Notificado do pedido, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º, 55º e 56º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), veio o Primeiro-Ministro pronunciar-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma, alegando, fundamentalmente, o seguinte:
O direito de propriedade privada é um direito fundamental de natureza económica, que não pode ser concebido de forma unilateral, como mero direito de defesa oponível aos poderes públicos. A sua tutela faz-se nos termos da Constituição e da lei, não implicando a interdição da intervenção reguladora dos poderes públicos.
Essa intervenção dos poderes públicos deve ter em conta a função social que a Constituição atribui a esse direito, função neste caso inserida na complexa estrutura das formas de propriedade dos meios de produção constitucionalmente estabelecida.
O normativo em causa insere-se numa transição de um estado autoritário e corporativo para um estado de direito democrático, na qual eram desadequadas as formas tradicionais de exploração da terra e o disposto no Código Civil em matéria de remição nos casos de renda perpétua e renda vitalícia, resultando a intervenção legislativa da necessidade de proteger o mais débil em lugar do mais forte.
O pedido funda-se numa concepção pré-constitucional do direito de propriedade, ignorando a função social deste direito. Sendo elemento essencial do direito de propriedade o direito a não ser privado dela, esse direito a não ser privado da propriedade não é um direito absoluto, mas um direito a não ser arbitrariamente privado de propriedade e a ser indemnizado ou compensado no caso de desapropriação.
No caso, existe um nítido e claro fundamento social, de resto constitucionalmente previsto e explanado, que suporta a medida legislativa. Esse suporte constitucional resulta, nomeadamente, dos preceitos contidos na alínea d) do artigo 9º, nas alíneas a), b) e g) do artigo 81º, no artigo 88º, na alínea b) do n.º 1 do artigo 93º, nos artigos 94º e 95º e no n.º 1 do artigo 96º. E a intervenção legislativa em causa poderia ainda fundamentar-se no princípio geral contido no artigo 2º da Constituição.
Da conjugação destas normas resulta o suporte constitucional da existência de um interesse público suficientemente preciso e relevante que fundamenta a restrição do direito de propriedade. A medida não é, portanto nem arbitrária nem excessiva, mas pelo contrário necessária, adequada, legítima, admissível e razoável face ao fim de interesse público relevante que o Governo constitucionalmente é chamado a concretizar.
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O requerente solicita, de forma genérica, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de Outubro.
Apesar de o artigo 5º conter quatro números, a questão de constitucionalidade suscitada no pedido coloca-se exclusivamente quanto ao disposto no primeiro deles. O que efectivamente se questiona é a conformidade à Constituição do direito do rendeiro a remir o contrato, tornando-se dono da terra, mediante o pagamento de um determinado preço ao proprietário/senhorio. Ora, é o n.º 1 do artigo 5º que contém tal norma.
Assim sendo, a análise da constitucionalidade do artigo 5º centrar-se-á, em exclusivo, na norma contida no seu n.º 1. As normas dos n.ºs 2 a 4 serão tratadas como instrumentais relativamente ao n.º 1, no sentido de serem abrangidas por uma eventual declaração de inconstitucionalidade.
O requerente pede a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma identificada, por entender, com fundamento nos artigos 18º, n.º 2, e 62º da Constituição, que existe uma restrição desproporcionada, excessiva e injusta do direito de propriedade privada.
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Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se estabeleceu.
II
Questão prévia.
A vigência da norma do n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74
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Antes de conhecer da questão da conformidade constitucional da norma contida no n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, importa, em primeiro lugar, averiguar se esta norma ainda vigora, uma vez que, desde a sua aprovação, ocorreram diversas alterações ao regime jurídico do arrendamento rural.
A questão da vigência é analisada tanto no pedido como na resposta do órgão autor da norma, concluindo-se, em ambos os articulados, por uma resposta positiva. É também essa a posição que o Tribunal adopta, pela seguinte ordem de razões:
Em primeiro lugar, porque a legislação posterior em matéria de arrendamento rural nunca revogou expressamente o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74.
Com efeito, o artigo 48º da Lei 76/77, de 29 de Setembro, revogou apenas o artigo 3º daquele diploma, além de estabelecer que a competência atribuída às comissões arbitrais nos artigos 5º, 7º e 8º transitava para os tribunais de comarca. O restante conteúdo do Decreto-Lei n.º 547/74 manteve-se em vigor, sendo dado ao Governo um prazo de 6 meses para proceder à sua revisão (n.º 1 do artigo 48º); mas tal revisão não chegou a ser efectuada. O esgotamento desse prazo de seis meses não determina a cessação da vigência do diploma, dado não se tratar de uma lei temporária nem resultar da redacção do referido n.º 1 do artigo 48º a consequência de caducidade do Decreto-Lei n.º 547/74.
E não consta igualmente do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, que aprovou o actual Regime do Arrendamento Rural (doravante, RAR), qualquer disposição expressamente revogatória do Decreto-Lei n.º 547/74.
Em segundo lugar, porque se entende não ter existido revogação tácita ou indirecta do Decreto-Lei n.º 547/74.
Na verdade, o diploma sub iudice não contém o regime geral do arrendamento rural, sendo antes apenas aplicável, nos termos do seu artigo 1º, a um grupo especial de casos de arrendamento, em que as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro, ou seja, a casos em que o rendeiro tornou o solo cultivável e fez plantações (isto é, efectuou trabalhos de melhoramento e modificação do solo) que influenciaram, decisiva e positivamente, a produtividade da terra.
Ora, a Lei n.º 76/77 ressalvou expressamente a vigência desse regime especial e o RAR não contém normas especificamente dirigidas aos casos delimitados pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 547/74.
Por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 7º do Código Civil, deve, pois, concluir-se que as regras especiais contidas no Decreto-Lei n.º 547/74 não foram revogadas pelo regime geral instituído pelo RAR.
É este, aliás, o entendimento perfilhado no Acórdão de 14 de Janeiro de 1993 do Tribunal da Relação de Évora (publicado em Colectânea de...
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