Acórdão nº 60/06 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Janeiro de 2006

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução18 de Janeiro de 2006
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 60/2006

Processo n.º 309/05 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

A., L.da, apresentou, em 8 de Setembro de 2003, no âmbito do processo de execução fiscal n.° 3492-03/100738.6, que corria termos no 4.º Serviço de Finanças de Loures, com vista à cobrança de dívidas de IVA, direitos aduaneiros e juros compensatórios, no montante total de € 249 462,27, requerimento de suspensão desse processo executivo, ao abrigo do artigo 169.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro (CPPT), devendo ser fixado o montante de garantia a prestar para esse efeito.

Por despacho de 7 de Junho de 2004, o Chefe do 4.º Serviço de Finanças de Loures indeferiu o referido requerimento, na parte relativa à dívida de direitos aduaneiros, no montante de € 212 684,98 – com base na informação prestada, em 24 de Maio de 2004, pela Direcção Regional de Contencioso e Controlo Aduaneiro de Lisboa, no sentido da impossibilidade da suspensão do processo executivo no que no diz respeito à dívida exequenda relativa a direitos aduaneiros, além do mais, devido a não se encontrarem satisfeitas nenhuma das duas condições exigidas para o efeito pelo artigo 244.º do Código Aduaneiro Comunitário (CAC), instituído pelo Regulamento (CEE) n.º 2913/92, do Conselho, de 12 de Outubro –, mas deferiu-o no que se refere à dívida de IVA e juros compensatórios, no montante de € 36 777,29, dado se tratar de receitas tributárias nacionais.

A interessada apresentou, em 7 de Junho de 2004, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loures, reclamação contra o referido despacho, na parte em que indeferiu a impetrada suspensão, suscitando, além do mais, a questão da inconstitucionalidade, “por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da coerência do sistema”, da norma do artigo 169.º, n.º 6, do CPPT, que exclui a aplicação do disposto nesse artigo (suspensão da execução mediante prestação de garantia) “às dívidas de recursos próprios comunitários”.

A reclamação foi julgada improcedente por sentença de 10 de Novembro de 2004. Essa sentença fundamentou-se, desde logo, na “extemporaneidade” da reclamação, “excepção que implica, desde logo, o seu não conhecimento”, mas, passando, “no entanto, à apreciação do mérito da causa”, concluiu pela conformidade constitucional da norma do artigo 169.º, n.° 6, do CPPT, “atento o princípio da primazia das normas de direito comunitário, que vigoram directamente no ordenamento jurídico interno”.

A reclamante interpôs recurso desta sentença para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (STA), sustentando, além do mais, que: (i) “a interpretação e aplicação da norma do n.° 6 do art. 169.º do CPPT, tal como são apresentadas pelo tribunal a quo é incoerente, ilegal e inconstitucional, na medida em que desvirtua a ponderação adequada de interesses (Administração/contribuintes) construída com a LGT e o CPPT, e coloca os contribuintes/operadores económicos em posições diferenciadas e desequilibradas (mesmo entre si) perante a mesma situação ou realidade fiscal, lesando seriamente os operadores que arreda da aplicação original do regime do artigo 169.º (sem o famigerado n.° 6), em violação dos princípios constitucionais da igualdade e da não discriminação e da coerência do sistema” (conclusão 3.ª); e (ii) “por outro lado, o princípio da primazia do direito comunitário, no actual estado de desenvolvimento das relações entre os ordenamentos jurídicos comunitário e português, torna inaplicáveis as leis ordinárias nacionais contrárias ao direito originário ou derivado, mas não os preceitos e princípios constitucionais (pelo menos o direito derivado, como é o caso dos autos)” (conclusão 5.ª).

Por acórdão de 2 de Março de 2005, a Secção de Contencioso Tributário do STA negou provimento ao recurso, expendendo, quanto à questão da inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 6, do CPPT, o seguinte:

“Tal normativo regula a suspensão da execução fiscal e as garantias a prestar para o efeito, dispondo, todavia, aquele n.° 6 que o aí disposto se não aplica às dívidas de recursos próprios comunitários, que é o que está ora em causa nos autos.

(Em breve parêntesis, esclareça-se que, ao contrário do que pretende a recorrente, não foi «em manifesto estado de desespero e destempero» (sic) que o Orçamento para 2003 aditou aquele n.° 6, «visando afastar esta possibilidade (garantia) ao contribuinte» – cf. alegações a fls. 175.

Tal n.° 6, como o n.° 5, constava já da redacção original; só que, por mero lapso, haviam sido omitidos aquando da republicação do CPPT, operada pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho – artigo 13.º. A «alteração» operada pela Lei n.° 32-B/2002, de 3 de Dezembro, limitou-se a «repor» a normação respectiva.

Aliás, já o artigo 1.º, n.º 1, da LGT ressalvava do seu âmbito de aplicação «o disposto no direito comunitário».)

Na verdade, os actos tributários, como actos de natureza administrativa, são susceptíveis de execução imediata, no caso através do processo de execução fiscal, findo o prazo de pagamento voluntário dos tributos, independentemente da respectiva impugnação graciosa ou contenciosa.

O artigo 169.º prevê os actos e condicionalismos em que se verifica a suspensão da execução.

Quanto aos recursos próprios comunitários, igualmente cobrados coercivamente na execução fiscal – cf. [Jorge de Sousa,] Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado, 4.ª edição, p. 788, nota 10, e artigo 148.º, n.º 1, alínea a) – o artigo 244.º do CAC prevê um regime especial de suspensão da execução, face ao qual não basta – mas também não é imprescindível – a prestação de garantia, antes se exigindo o condicionalismo nele expresso.

«Consequentemente, é de concluir que a forma de obtenção de suspensão da eficácia e consequente execução de actos administrativos ou tributários em matéria aduaneira a que é aplicável o Código Aduaneiro Comunitário, será a prevista neste art. 244.°

É o reconhecimento desta aplicação prioritária do Código Aduaneiro Comunitário, quanto à suspensão da eficácia de actos de liquidação de receitas tributárias aduaneiras que tem em vista o n.º 6 do presente artigo 169.º, ao estabelecer que o regime previsto neste artigo não se aplica às dívidas de recursos próprios comunitários.

Assim, serão as autoridades aduaneiras, e não o órgão da execução fiscal, quem pode decidir sobre a suspensão da execução dos actos de liquidação de receitas tributárias aduaneiras.

A decisão sobre a atribuição deste efeito suspensivo, seja ou não provocada por requerimento do interessado na sua obtenção, é controlável através de recurso contencioso (o que corresponde a um direito constitucionalmente garantido pelo artigo 268.º, n.º 4, da CRP), a que são aplicáveis as regras do direito interno português, conforme é determinado no artigo 245.º do Código Aduaneiro Comunitário.» – cf. Jorge de Sousa, citado, p. 789, nota 10.

(Assim e em outro breve parêntesis, esclareça-se igualmente que, ainda ao contrário do que pretende a recorrente, a alegada actuação das autoridades aduaneiras – indeferindo «sistemática e sumariamente os pedidos de suspensão» – cf. fls. 173/75 – tem remédio, não em termos da pretendida declaração de inconstitucionalidade, mas do predito recurso contencioso, com pedido de suspensão de eficácia do acto de indeferimento.)

E é em tal diferença de regime que radicaria, na tese da recorrente, a inconstitucionalidade daquele n.° 6 do art. 169.º do CPPT, por «violação dos princípios constitucionais da igualdade e da não discriminação e da coerência do sistema» – cfr. nomeadamente a conclusão 3.ª

Mas cremos que sem razão.

O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado variadíssimas vezes sobre o princípio da igualdade, reconduzido, na vertente ora em causa, essencialmente, à proibição do arbítrio.

O princípio é acolhido no artigo 13.º da CRP e estruturante do Estado de direito democrático e do próprio sistema constitucional global – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, 1993, p. 125.

Postula, em síntese, que se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais e tratamento desigual a situações desiguais, proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual de situações desiguais.

Proíbe-se, assim, o arbítrio e afasta-se a discriminação infundada.

Por outro lado, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual, «o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da diferença, de modo que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciando os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação».

Cf., por todos e por mais recentes, os Acórdãos do Tribunal Constitucional de 2 de Junho de 2004, n.º 403/04, in Diário da República, II Série, de 22 de Julho de 2004, com larga citação doutrinal e jurisprudencial.

Ora, há-de reconhecer-se como evidente a diversidade de situações.

As receitas próprias de países membros da Comunidade Europeia destinam-se à satisfação de interesses próprios, segundo os ditames de política económica e financeira de cada um e da satisfação das respectivas necessidades públicas, de que é base fundamental o Orçamento do Estado e as Grandes Opções do Plano.

Ao passo que os recursos próprios comunitários destinam-se à satisfação de interesses próprios da Comunidade, segundo os ditames por esta estabelecidos. De modo que se trata de situações diversas, a exigir normação distinta: normação interna para aquelas, comunitária para estas.

Aliás, nunca o artigo 169.º poderia aplicar-se, mesmo sem o seu n.° 6, às dívidas de recursos próprios comunitários.

Desde logo, seria incompatível com a LGT dito artigo 1.º e com o próprio sentido da autorização legislativa em que o...

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