Acórdão nº 145/06 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Fevereiro de 2006

Magistrado ResponsávelCons. Bravo Serra
Data da Resolução22 de Fevereiro de 2006
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 145/2006

Processo nº 873/2005.

  1. Secção.

Relator: Conselheiro Bravo Serra.

1. A., na qualidade de detentora de uma quota na sociedade B., Ldª, apresentou queixa criminal contra C., igualmente sócio daquela sociedade e da mesma sócio gerente e director geral, imputando-lhe o cometimento de factos que, na óptica da denunciante, o tornariam incurso na autoria de um crime de infidelidade, previsto e punível pelo artº 224º do Código Penal.

Por despacho proferido em 14 de Outubro de 2004 pela Procuradora-Adjunta em funções junto do Tribunal de comarca de Ponta Delgada, foi determinado o arquivamento do inquérito, já que, em síntese, foi entendido que, a haver prejuízo – o que se não verificaria no caso concreto –, ele incidiria sobre o património da B. e, sendo o denunciado ilícito um crime semi-público, tão só a esta sociedade caberia legitimidade para deduzir a queixa crime, além de que a conduta do denunciado não integrava a prática do crime em causa.

Vindo então a denunciante requerer a sua constituição como assistente e requerer a abertura da instrução, o Juiz de instrução criminal daquele Tribunal de comarca, por despacho de 7 de Janeiro de 2005, admitiu-a a intervir nos autos como assistente e determinou a abertura da instrução.

Desse despacho recorreu o denunciado para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Na resposta à motivação, a denunciante, em dados passos, fez escrever: –

“(…)

  1. A ora recorrida, age enquanto sócia, ainda que minoritária, de uma entidade jurídica que havia confiado a disposição de interesses alheios (para utilizarmos a formulação legal) ao arguido, e que somente perante a passividade da sociedade, entidade que no entender do recorrente, seria a única a ter interesse directo, tem interesse directo.

  2. O entendimento perfilhado pelo recorrente, permite que tal como neste caso concreto, os sócios maioritários, gozassem de imunidade perante este e se calhar outros, tipos legais de crime, na medida em que a detenção da maioria do capital permite-lhes determinar[ ] a vontade da sociedade, que no caso concreto seria a de não apresentar queixa.

  3. parece-nos assim óbvio, que não obstante a formulação restritiva dos arestos doutamente citados nas alegações de recurso, à recorrida cabe um interesse directo ou ainda que reflexo ou indirecto, merecedor da tutela jurídica e em concreto da tutela penal.

  4. Ao entender-se em sentido diverso, em nossa modesta mas firme opinião, está o tribunal a violar o princípio do acesso ao direito e à justiça, plasmado na primeira parte do nº 1 do artº 20º da C.R.P., ao impedir que os sócios minoritários gozem de tutela jurídico-penal sobre os crimes praticados pelos sócios maioritários,

  5. Sendo certo que de todo não se espera a revogação do despacho recorrido, certo é que caso tal aconteça desde já se arg[ú]i a inconstitucionalidade material do artº 68º nº 1 do CPP, na interpretação que nega o interesse dos sócios nos crimes praticados contra a sociedade, por violação do disposto no artº 20º nº 1 da C. R. P.

    Pelo que se formulam as seguintes CONCLUSÕES:

    (…)

    1. A recorrida tem por isso interesse directo em agir e é afectada no seu património e na confiança que depositava no arguido, confiança esta que constitui igualmente um bem jurídico tutelado pela norma do artº 224º do CP.

    2. Ao entender-se em sentido diverso, está a negar-se a tutela jurídico-penal dos sócios minoritários em relação ao crime p. p. pelo artº 224º do CP.

    3. Pelo que o entendimento de que o artº 68º nº 1 al. a) do CP que negue o acesso aos tribunais no caso concreto, viola o disposto na primeira parte do nº 1 do artº 20 da C.R.P., pelo que se arg[ú]i a inconstitucionalidade material desta norma caso tal entendimento venha a ser perfilhado.

    (…)”

    O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 22 de Setembro de 2005, concedeu provimento ao recurso, determinando a revogação da decisão impugnada por outra que não admitisse a denunciante a intervir nos autos como assistente.

    A esse aresto foi carreada, no que ora releva, a seguinte fundamentação: –

    “(…)

  6. – Em conformidade com o art. 68 nº 1 al. a) CPP podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesse[s] que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos.

    Tomando como ofendidos apenas os titulares dos interesses que a lei quis proteger consagrou-se, ou melhor, manteve consagrado o conceito restrito de ofendido que a doutrina e a jurisprudência formularam sem divergências de maior no domínio do CPP de 1929 (cfr. v. g. na doutrina Beleza dos Santos, ‘Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal’, RLJ, ano 57, Figueiredo Dias, ‘Direito Processual Penal’, 1º vol., p. 505-506 e 512-513; Cavaleiro de Ferreira, ‘Curso de Processo Penal’, I, p. 129; com significado, na jurisprudência, o Ac. do STJ de 66.1.5. BMJ 153-133).

    Neste conceito de ofendido não cabem, por isso, o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais. Podem estes ser lesados e nessa qualidade sujeitos processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes.

    Ora, esta circunstância desde logo afasta a possibilidade de a queixosa vir a constituir-se assistente.

    Ainda que nos ocupássemos do interesse jurídico-penal a que a aplicação daquele conceito de ofendido poderia levar no caso concreto, mesmo que procurássemos precisar qual o bem jurídico que as normas invocadas protegem o certo é que sempre depararíamos com a questão da titularidade desse bem. Ainda que não pública ou não exclusivamente p[ú]blica ela não seria decerto pertença da queixosa mas sim da sociedade de que era sócia.

    Admitindo, que o interesse protegido nos crimes de infidelidade não é só o património do titular afectado directamente com a conduta do arguido mas também a ‘confiança no tráfico jurídico’ (José Ant[ó]nio Barreiros, Crimes Contra o Património, U.L., 1996, 211), sempre haveria de concluir-se que, no caso concreto, o património que está em causa, aquele que merece a protecção da norma é evidentemente o da sociedade ‘B., Lda.’ da qual era gerente a queixosa e não, claro está, de uma forma directa o património desta na qualidade de sócio. Lesada seria, por conseguinte, a sociedade e não, directamente, qualquer dos seus sócios. O direito aos ganhos da sociedade, bem como o direito ao seu bom-nome e à sua valorização, enquanto factores de valorização da quota são decerto respeitáveis e atendíveis mas são apenas interesses mediatos ou indirectos dos sócios.

    Neste sentido, decidiu v. g. o Ac. Rel. de Coimbra de 90.5.23, CJ 3/90-73 (precisamente em relação a um crime de infidelidade), seguindo aliás o ensinamento de Figueiredo Dias, no domínio do CPP de 1929, ensinamento esse que, como já se deixou dito continua inteiramente válido. Partindo do conceito de ofendido a que já se aludiu conclui aquele Autor (Direito Processual Penal, I, p. 513) que:Não podem...

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