Acórdão nº 711/06 de Tribunal Constitucional (Port, 29 de Dezembro de 2006

Magistrado ResponsávelCons. Pamplona Oliveira
Data da Resolução29 de Dezembro de 2006
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 711/2006

Processo n.º 1067/06

Plenário

Relator: Conselheiro. Pamplona de Oliveira

ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

  1. No dia 14 de Dezembro de 2006, invocando urgência, o Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do n.º 1 do artigo 278° da Constituição e do n.º 1 do artigo 51º e do n.º 1 do artigo 57° da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, a apreciação, no prazo de quinze dias, da conformidade constitucional da norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 19° e de todas as constantes do artigo 20º do decreto da Assembleia da República registado com o n.º 93/X, entrado na Presidência da República em 11 de Dezembro para ser promulgado como lei. Alega:

    I

    1. As normas relativamente às quais recaem as minhas dúvidas sobre a respectiva conformidade constitucional constam de decreto aprovado pela Assembleia da República e enviado para promulgação como Lei das Finanças Locais e reportam-se aos efeitos decorrentes da faculdade nelas prevista de os municípios poderem vir a ter uma participação variável nas receitas do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), imposto que é nacional e não local e incide sobre o rendimento global do agregado familiar.

    2. Verifica-se, efectivamente, que nas disposições normativas constantes da alínea c) do nº 1 do art° 19º e dos n°s 1 e 4 do art° 20° do decreto em apreciação:

      1. Se reconhece aos municípios, em cada ano, o direito a uma participação variável até 5%, no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição e relativa aos rendimentos do ano imediatamente anterior;

      2. Se habilita cada município a prescindir de parte da mesma receita em favor dos sujeitos passivos, autorizando-se os órgãos autárquicos competentes a deliberar uma percentagem de participação da autarquia nas receitas do IRS em valor inferior à taxa máxima definida no nº 1 do art. 20°, sendo nesse caso o produto da diferença entre as taxas e a colecta líquida considerada como dedução à colecta do referido imposto, em favor dos contribuintes.

    3. Do regime legal constante das disposições mencionadas no nº 2 deste pedido resulta a possibilidade de os sujeitos passivos do IRS poderem ser tributados de forma diferente, assentando essa diferença, não na respectiva capacidade contributiva, mas no critério do seu domicílio fiscal.

      Pelo que,

    4. Considero existirem fundadas dúvidas sobre se semelhante modelação da incidência do IRS, não afrontará:

      1. O princípio da capacidade contributiva que decorre da conjugação do n° 1 do artigo 103º com o nº 1 do artigo 104° da Constituição da República Portuguesa (CRP):

      2. O princípio da igualdade na sua dimensão territorial, nos termos do n° 2 do art° 13° da CRP;

      3. O princípio do Estado unitário, consagrado no n° 1 do art° 6° da CRP.

      II

    5. O princípio da capacidade contributiva é caracterizado consensualmente pela doutrina e pela jurisprudência do Tribunal Constitucional como um princípio estruturante do sistema fiscal que exprime e concretiza o princípio da igualdade tributária e que tem assento implícito na “Constituição Fiscal”, por força da conjugação dos artigos 103° e 104° da CRP.

    6. O princípio em referência enuncia o dever de todos pagarem imposto de acordo com um critério uniforme, o qual radica na tributação de cada um segundo a sua capacidade económica (Ac. n° 452/2003), daqui decorrendo que:

      1. Ao ser determinado que cada sujeito passivo pague na medida das suas possibilidades (“capacidade para pagar”), o princípio da capacidade contributiva constitui um pressuposto de justiça fiscal no que tange à repartição dos impostos pelas pessoas;

      2. O critério do pagamento na medida das possibilidades supõe que os contribuintes com maior capacidade económica venham a pagar um imposto mais elevado e os contribuintes com menor capacidade económica, um imposto mais baixo;

      3. Embora o princípio da capacidade contributiva não consuma o princípio da igualdade fiscal, ele constitui, todavia, umas das suas expressões ou manifestações mais fortes, bem como a de um elemento conformador da ideia de Estado de Direito Material;

      4. O princípio da capacidade contributiva compreende duas dimensões, que são a de pressuposto e a de limite da tributação: como pressuposto ou fonte da tributação, o princípio da capacidade contributiva baseia-se na força económica do contribuinte expressa na titularidade ou utilização da riqueza; já como limite ou medida valor do imposto, veda que o legislador adopte elementos de ordenação incidentes sobre os elementos constitutivos do imposto contrários às exigências de justiça fiscal enunciadas pelo mesmo princípio.

    7. A capacidade contributiva, tal como foi definida, reclama não só a personalização da tributação mas também que o legislador dirija o imposto às três manifestações de riqueza relevantes que indiciem a capacidade económica do contribuinte e que constituem a base tributável: trata-se da riqueza que angaria (o rendimento); a riqueza que possui (o património) e a riqueza que dispende (o consumo).

    8. Sem prejuízo de poder incidir sobre os impostos indirectos, verifica-se, contudo, que a “intensidade” do princípio da capacidade tributária “(...) é bem maior nos impostos sobre o rendimento, especialmente no imposto pessoal sobre o rendimento” (cfr. Casalta Nabais, “Estado Fiscal, Cidadania Fiscal e Alguns dos seus Problemas”, separata, Coimbra, 2002, p. 588), que é, precisamente, o caso do IRS.

    9. No que em particular respeita à aplicação do princípio da capacidade contributiva à tributação de rendimentos, deverá o legislador no respeito do princípio da “tributação do rendimento líquido”, acautelar que, em sede de despesas dedutíveis se evite “qualquer tipo de exclusões não intencionais, de modo a que não surjam situações de discriminação negativa contrários ao princípio da igualdade, devendo preocupações de equidade de ordem idêntica presidir ao regime dos abatimentos” (cfr. Saldanha Sanches, cit., p. 197).

    10. Neste sentido, as deduções consistem na forma de tomar líquidos certos rendimentos e os abatimentos o modo de levar em conta aspectos determinantes da capacidade contributiva das diversas pessoas e agregados familiares ligados a exigências existenciais, devendo estas operações assumir carácter objectivo e não atender, sob pena de arbítrio, a critérios alheios à capacidade contributiva das pessoas sujeitas à tributação.

      Ora,

    11. No caso "sub iuditio" confere-se a cada município, nos termos expostos no n° 2 deste pedido, a faculdade de deliberarem prescindir de uma parte da receita do IRS que lhes cabe nos termos da lei, em benefício dos contribuintes com domicílio fiscal na respectiva circunscrição, sendo o produto da diferença entre as taxas e a colecta líquida tido como dedução à colecta do referido imposto, em favor dos mesmos contribuintes.

    12. O regime normativo em apreciação, não parece mostrar-se conforme com o princípio constitucional da capacidade contributiva, na medida em que a nova variante de dedução à colecta, radicada no critério do domicílio fiscal, nada aparenta ter a ver com os pressupostos estruturantes dos abatimentos à colecta.

      Na verdade,

    13. A conjugação do disposto nos n°s 1 e 4 do art° 20º do diploma sindicado permite, por exemplo, que:

      1. Sujeitos passivos do IRS, detentores da mesma capacidade contributiva mas fiscalmente domiciliados em municípios diferentes, possam ser tributados de forma diferente, por via de uma dedução à colecta do IRS, como efeito de os municípios onde residam prescindirem em seu favor, em percentagens diversas, de uma parte das receitas desse imposto a que têm direito, podendo ter-se por violado o critério da igualdade horizontal;

      2. Sujeitos passivos com maior capacidade contributiva do que outros possam ser sujeitos a uma menor tributação, por força das deduções à colecta, pela circunstância de o município onde os primeiros se encontrem domiciliados fiscalmente ter prescindido de um valor mais expressivo das receitas a que têm direito, do que o município onde os segundos se encontrem domiciliados, podendo registar-se uma eventual lesão do critério da igualdade vertical.

    14. O critério da admissibilidade, não admissibilidade ou admissibilidade parcial das deduções consagradas pelo legislador, depende da respectiva harmonização com exigências de igualdade horizontal e vertical entre diversos grupos de contribuintes, pelo que o princípio constitucional da capacidade contributiva parece não ter sido observado pelas normas sindicadas, nas suas duas dimensões de pressuposto e de limite tributário, já que:

      1. O critério do domicílio fiscal, como fundamento da variabilidade das deduções à colecta do IRS, não se harmoniza com o critério fundamental da capacidade económica de cada pessoa, como pressuposto da respectiva tributação;

      2. Deduções à colecta variáveis de município para município, determinadas discricionariamente pelos respectivos órgãos autárquicos em favor dos contribuintes que neles se encontrem domiciliados fiscalmente são susceptíveis de gerar, num imposto pessoal, unitário e nacional como o IRS, uma sub-oneração fiscal para titulares de maiores rendimentos, bem como uma sobre-oneração para titulares de menores rendimentos violando-se o princípio da capacidade contributiva como limite da tributação.

    15. Não existe, ademais, um fundamento material razoável e evidente que possa sustentar a opção em eleger um regime de dedução assente no critério territorial do domicílio fiscal que figura na declaração de rendimentos (n°s 1 e 6 do art° 20° do diploma objecto de impugnação), nem vir a justificar, por hipótese, a consagração nesse mesmo regime, no desiderato da promoção do aumento do número de residentes em municípios carentes de fixação populacional ou do estímulo à criação de riqueza em municípios com menos recursos financeiros, na medida em que:

      1. Embora seja frequente que o domicílio fiscal dos contribuintes do IRS coincida com o local de residência, verifica-se, contudo, que este último não coincide, em numerosos casos, com...

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