Acórdão nº 620/04 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Outubro de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Gil Galvão
Data da Resolução20 de Outubro de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 620/04

Processo n.º 182/04

  1. Secção

Relator: Conselheiro Gil Galvão

Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

  1. Em procedimento cautelar de arresto, instaurado junto do Tribunal Judicial da Comarca de Porto de Mós, o requerente A. (ora recorrido) pediu que se ordenasse o arresto das participações sociais da B. (ora recorrente) junto da C., SAD.

  2. Por decisão daquele Tribunal, de 27 de Maio de 2003, foi aquele pedido deferido, tendo sido ordenado o “arresto das participações sociais da requerida B. junto da C., SAD, até à concorrência do montante de Esc. 231.927.454$00, ou seja, €: 1.156.849,26 (um milhão, cento e cinquenta e seis mil, oitocentos e quarenta e nove euros, e vinte e seis cêntimos), a realizar, nos termos do artigo 857º, n.º 1 e n.º 3 do Código de Processo Civil, mediante a efectiva apreensão dos títulos (acções) e subsequente depósito na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do tribunal”.

  3. Inconformada com esta decisão a B. recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 20 de Janeiro de 2004, negou provimento ao recurso. Para tanto, recusou aquela decisão aplicação ao disposto artigo 12º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 67/97, que considerou materialmente inconstitucional por violação dos artigos 13º, 18º, n.ºs 2 e 3 e 62º da Constituição. Para concluir desta forma escudou-se, para o que agora importa, na seguinte fundamentação:

    “[...] III - Também não procede a terceira objecção, centrando-se agora a nossa censura, em primeira linha, no pouco avisado legislador, que, visivelmente subjugado, a partir da alteração introduzida em 1996 (Lei n.º 19/96, de 25/06) na lei de Bases do Sistema Desportivo, pelo vital interesse da sociedade anónima desportiva na obtenção de lucro objectivo (“A sociedade desportiva pode repartir entre os accionistas o lucro legalmente distribuível” - cfr. art.º 23.º do dec.- lei n.º 67/97; o próprio preâmbulo; e, enquanto regime subsidiário, o art.º 294.º do C.S.C.; cfr. , ainda, Antónia Pereira, in “O direito aos lucros nas sociedades desportivas”, Quid Iuris, 2003, 158/161), pouco se deixou impressionar com a possibilidade de essa sociedade nascer com passivo que já onerava o clube (cfr. autor e obra acabados de citar 262).

    Tratou apenas de garantir a equivalência de valores de activo e passivo a transferir do clube para a sociedade, conferindo, na disposição legal em foco, claro tratamento discriminatório relativamente aos credores privados, como sugere José Manuel Meirim, na obra citada, 114, a colidir, de resto, desde logo, segundo acentua, com o próprio art.º 20.º n.º 4 da Lei de Bases, onde se salvaguarda, entre outros objectivos, "... a defesa dos direitos dos associados e dos credores (...)”.

    Sendo certo que, muito embora essa análise sintáctica não prime pelo rigor, por força, em parte, aparentemente, da imprecisa redacção conferida pela lei n.º 19/96 ao citado dispositivo, no sector em que alude à “...defesa dos direitos (...) dos credores do interesse público” (!!!), sempre se terá de ajuizar não poderem admitir-se, em qualquer hipótese, como vem pertinentemente afirmado, a respeito, embora, de tema distinto (contrato de transferência internacional de jogadores profissionais de futebol), por Maria Raquel Rei, in “Estudos de Direito Desportivo”, Almedina, 2002, 56,”... limitações aos direitos dos indivíduos que não se justifiquem por imperativos de ordem desportiva”.

    Sucede que, estabelecendo o princípio da igualdade (art.º 13.º C.R.P.), princípio estruturante do sistema constitucional global, a “proibição de prejuízo ou detrimento na privação de qualquer direito ..., abarcando”... tanto as vantagens como as desvantagens ilegítimas, na atribuição de direitos ou na imposição de um dever apenas a parte do universo de pessoas elegível para beneficiar do primeiro ou para arcar com o segundo ...”(Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, Coimbra Editora, 1993, 127/129), só deverá justificar-se, efectivamente, uma qualquer extensão garantística de determinado sujeito, de direito privado ou de direito público, ou, vistas as coisas de outro ângulo, uma compressão ou verdadeira limitação dos direitos de outrem, caso se mostre identificada precisa, proporcional e razoável situação de excepção, como é, na maior parte dos casos, a do reconhecimento da relevante função social do motivo de desequilíbrio.

    Motivo ou função social assinalável que, no caso, se não descortina, quando é certo estar-se, mesmo, mais fora que dentro do específico domínio do interesse estadual em "... promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto ... . (art.º 79.º n.º 2, C.R.P.), tal é, qual facto notório, a conhecida profundidade do envolvimento dos clubes fundadores nas sociedades desportivas a que dão causa, fortemente assinalada, já, em manifesto prejuízo da sua vocação associativa original, pela procura obsessiva de lucros visando assegurar a rea1ização do fim último da sociedade (a participação nas competições desportivas de natureza profissional), a implicar notadíssimo abrandamento do desempenho daquela função social estatutária, como que se invertendo, na prática, a pre-estabelecida fidelização funcional da sociedade desportiva ao clube fundador, subjugado que fica, este, afinal, ao interesse comercial propriamente dito, já não, pois, à satisfação de fins ideais, de natureza essencialmente desportiva.

    Com efeito, no exposto enquadramento, abre-se campo livre para o desencadeamento, por parte dos clubes fundadores, especialmente quando não possuam, como bastas vezes sucede, instalações desportivas próprias, de verdadeiros atentados à propriedade privada dos credores privados, subtraindo-lhes garantias com que razoavelmente poderiam contar: é que, não dependendo a própria transferência das obrigações do clube fundador de consentimento da contraparte (art.º 32.º n.º 4 da lei n.º 67/97, de 03/04), com isso se abrindo excepção, já, à regra geral da cessão da posição contratual (art.º 424.º n.º 1 do C.C.), vai colidir-se, também, com o princípio estabelecido na lei civil a respeito da garantia geral das obrigações (art.º 601.º do C.C.), parecendo deixar-se, mesmo, em crise, a possibilidade que assiste a qualquer credor de, como assinala António Manuel Morais, in . Sociedades Anónimas Desportivas/Derecho Comparado", Hugin, 2001, 121, colocado perante a diminuição de possibilidades de cobrança do seu crédito, instaurar uma providência cautelar para que a garantia não mingue, ou uma acção de impugnação pauliana, já que pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de embargo, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação dos patrimónios...

    Ora, não se vendo a que título tanto possa, razoavelmente, ocorrer, certo é que o proporcionado expediente nos sobressalta, advertindo para a danosidade social das soluções de confisco, ultrapassados que se mostram, no regime vigente, todos os limites de salvaguarda do direito à cultura física e ao desporto.

    Numa altura, para mais, em que, representada a manifesta fidelização recíproca do clube fundador e da sociedade anónima desportiva, se reconhece que, ao nível dos auxílios estaduais ao sector desportivo nos países da U.E., considerada toda uma lata possibilidade de ajudas, desde a concessão de vantagens positivas ou subvenções até às diversas variantes de redução de encargos, v. g., isenções fiscais ou arrendamento não oneroso de infraestruturas, “... a tendência recente assenta...”, segundo esclarece Alexandre Mestre, in Desporto e União Europeia; Uma Parceria Conflituante”, Coimbra Editora, 2002, 193, “... na adopção de regimes legislativos que impõem a redução progressiva até à ausência de auxílios do Estado aplicados ao sector profissional desportivo“.

    Quando assim é, como justificar tamanho desequilíbrio de tratamento como o que acaba de referir-se? Em nome de que interesses vitais estaria a agravante livre do cumprimento das obrigações voluntariamente assumidas com o cidadão comum, só pela mera persona1ização jurídica da equipa que já participava nas competições profissionais de futebol ?

    Como se justificaria a sua exclusão, pessoa colectiva que é, do âmbito de incidência do próprio art.º 182.º, alínea e) do C.C. ?

    Não se vê, seriamente, por muito que se aprecie o jogo, o espectáculo, a indústria do futebol, que se justifique tamanho atropelo à disciplina comum da garantia patrimonial, mesmo que seja como alguns cépticos terão afirmado, para salvar o futebol profissional, liquidando, embora, o clube desportivo ...

    Por isso se considera que o censurado preceito (art.º 12.º n.º 2 do dec.- lei n.º 67/97) é, no ponto em foco (inapreensibilidade judicial por parte de pessoas do domínio privado), inconstitucional, por violação, enfim, dos artºs 13º, 18º, n.ºs 2 e 3 e 62º do texto fundamental”.

  4. É desta decisão que vem interposto pela B., ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art. 70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade do artigo 12º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de Abril, a que a decisão recorrida recusou aplicação por alegada violação dos artigos 13º, 18º, n.ºs 2 e 3 e 62º da Constituição.

  5. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:

    1. O douto acórdão recorrido considerou inconstitucional o art. 12º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de Abril, por violação dos arts. 13º, 18º, nºs 2 e 3 e 62º da CRP;

    2. Tal norma, porém, não é arbitrária ou desrazoável, logo não infringe o referido art. 13º;

    3. De igual modo, a mesma norma é fundada, adequada, necessária e proporcionada, logo não infringe os arts. 18º, n.ºs 2 e 3 e 62º da CRP;

    4. Entendendo de forma diferente, o douto acórdão recorrido violou aquelas disposições constitucionais”.

  6. Em 19 de Maio de 2004 a recorrente juntou aos autos um Parecer emitido pelo Professor D. e pelo Mestre E., em que...

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