Acórdão nº 607/03 de Tribunal Constitucional (Port, 05 de Dezembro de 2003
Magistrado Responsável | Cons. Benjamim Rodrigues |
Data da Resolução | 05 de Dezembro de 2003 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃ0 N.º 607/2003
Proc. n.º 594/03
-
Secção
Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A ? Relatório
1 - A., identificado no processo, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho interlocutório proferido pelo Senhor Juiz do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, nos autos do processo de inquérito n.º 1718/02.9JDLSB, no decurso do auto do seu interrogatório como arguido detido, bem como do despacho que decidiu aplicar-lhe a medida de coacção de prisão preventiva, todos de 20 de Maio de 2003.
2 - O despacho interlocutório é do seguinte teor:
Seguidamente por ele senhor Juiz foi proferido o seguinte despacho: No que respeita à nulidade da utilização como meio de prova do teor dos diários apreendidos no âmbito da busca realizada à residência do arguido cumpre em primeiro lugar, e com o devido respeito, relembrar que só podem existir nulidades em Processo Penal quando qualquer acto ou decisão tenha sido levada a cabo ou proferida. A defesa arguiu a nulidade da utilização para efeitos probatórios do teor dos diários. Ora, este Tribunal não proferiu qualquer decisão cujo fundamento tenha na sua génese o conteúdo dos diários, pelo que a alegada nulidade é inexistente. No entanto, sempre se dirá, em jeito de antecipação, que a defesa não põe em causa a legitimidade da busca e que o que contesta é que aquilo que foi encontrado na busca, a saber os diários, possam ser utilizados como meio de prova. No entanto, com respeito por opinião diversa assim não entendemos. Na verdade, a lei é clara, no artigo 125º do CPP, ao dizer que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. Do elenco das que são proibidas consta a do artigo 126º, n.º 3, mas para tal acontecer necessário seria que a sua obtenção não estivesse legitimada por um despacho judicial, o que não acontece. O Tribunal não põe em causa que a utilização do material probatório contido nos diários represente uma intromissão na vida privada, só que o próprio legislador constitucional deu o seu aval a tal intromissão ao ressalvar que tal vida privada poderia ser violada por ordem judicial. Ao ser ordenada uma busca, todo o material apreendido pode ser legitimamente utilizado desde que a sua forma de obtenção não seja nenhuma das tipificadas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 126º. Basta atender ao auto de busca para se poder constatar que nenhuma das situações prevista no dito n.º 2 ocorreu.
Pelo exposto julga-se improcedente a invocada nulidade.
No que respeita à irregularidade invocada este Tribunal, no âmbito deste mesmo processo, já teve ocasião de se debruçar sobre tal questão. Antes, contudo, saliente-se que a posição defendida pelo arguido, certamente sem qualquer outra intenção, omite o facto de que este Tribunal começou o presente interrogatório informando o arguido que estava detido ao abrigo de um mandado emitido pelo Ministério Público em que lhe eram imputados os crimes ali referidos, que a prática de tais crimes terá ocorrido entre 1998 e a data presente e que as vítimas dos mesmos seriam alunos ou ex-alunos da B. e eventualmente outras pessoas.
Este Tribunal, como primeira pergunta, questionou o arguido sobre se mantivera relações sexuais com menores de idade e, designadamente, com indivíduos com menos de 18 anos ou menos de 16. O arguido, conforme resulta das suas próprias respostas, referiu desde logo que no período em questão não mantivera qualquer relação sexual com menores de 16 anos. Ora, são estas relações sexuais - com menores de 16 anos - que estão na base da emissão do mandado de detenção e seu cumprimento. Conforme este Tribunal referiu no despacho de fls. 1139 e seguintes "a técnica utilizada no interrogatório foi a de começar a inquirir o arguido sobre factos gerais" - saber se manteve relações com menores de 16 anos no período em questão - "só descendo à pormenorização caso tal se justificasse". Assim, por exemplo, se o arguido tivesse referido que tinha mantido uma ou várias relações sexuais com menores de 16 anos e por qualquer razão não se recordasse da sua identificação, este Tribunal ter-lhe-ia perguntado se manteve alguma relação com o senhor "A", "B" ou "C". O arguido, ao negar os factos, acaba por tornar desnecessária a sua confrontação com as provas. E percebe-se que o Tribunal assim haja actuado: É que se por um lado é necessário assegurar os direitos da defesa do arguido, por outro é necessário assegurar o segredo de justiça e como bem refere a defesa o contraditório não vigora nesta fase ou surge algo mitigado e de nada valeria para a defesa do arguido confrontá-lo com a prova "X", "Y" ou "Z", porque a resposta seria invariavelmente a mesma: Não manteve relações sexuais com menores de 16 anos. E este facto não pode ser desconhecido do arguido. O segredo de justiça a par do direito de defesa é um interesse que tem que ser salvaguardado e tal salvaguarda traduz-se na não divulgação das provas constantes do inquérito para além do estritamente necessário ao direito de defesa do próprio arguido (neste sentido Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal - Vol. III - 155 e 156). Pelo exposto não se atende à invocada irregularidade, julgando-se a mesma improcedente.
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3 - Por seu lado, o despacho em que se decidiu aplicar ao arguido a medida cautelar de prisão preventiva é do seguinte teor:
Declara-se válida a detenção porque efectuada ao abrigo no disposto nos artigos n.os 257º, n.º 1, e 258º, n.os 1, e 3 do C. P. Penal, tendo sido observado o prazo previsto na lei - art. 141º, n.º 1 do mesmo diploma .
Valida-se a revista efectuada ao arguido nos termos e para o efeitos no disposto nos artigos 251º, n.º 2, e 174º, n.º 5, do CPP.
Congratula-se este Tribunal com o facto de há muito ter sido abolido o Santo Ofício da Inquisição já que para tal Tribunal as provas contidas nestes autos determinariam seguramente que pelo menos um poste estivesse a ser colocado no Terreiro do Paço e que fogueira se não estivesse acesa estaria certamente a ser preparada. É que, ao que julgamos saber aquele Tribunal funcionava muito à base do ouvir dizer, do disse que disse e de provas forjadas. Mas isso foi num outro tempo. Neste processo e neste tempo coligiu o Ministério Público um manancial probatório que lhe permitiu não só ordenar a detenção como promover uma prisão preventiva.
Na verdade, o que destes autos resulta é que o arguido no período compreendido entre 1998 e a data presente se relacionou sexualmente com menores do sexo masculino que tinham à data de tais relações menos de 16 anos, tendo com este praticado actos de sexo oral e anal e masturbação, designadamente. A imputação de tais factos a qualquer pessoa é em si grave e sendo certo que, em abstracto, se poderia estribar tão só em prova testemunhal houve o cuidado da parte do investigador de confrontar depoimentos, de proceder a buscas - não tanto a de hoje que é irrelevante para a detenção - de ver e analisar topografias de locais e edifícios, proceder a exames médicos e periciais, tudo com vista a poder afirmar a credibilidade dos depoimentos que estribam o essencial das imputações. Resulta assim, e face ao exposto, que o arguido, conforme o teor de fls. 131 a 134, 139, 295 a 300, 386 a 388, 508 a 512, 1224 a 1231, 1286 a 1288, 1410 a 1413, 1499 a 1501, 2056 e 2057, 2408 a 2410, 2585 a 2587, 2588 e 2589, 2591 a 2593, 2699 a 2702, 2878 a 2881, 2919 a 2922, 3634 a 3639, 3763 a 3766, 3786 a 3789, 3840 a 3844, 3862 a 3866, 4005 a 4013, 4304, 4243, 4286, 4234 a 4241, 4436 a 4438, e 4401 a 4406, que o arguido cometeu três crimes de abuso sexual de crianças previstos e punidos pelo artigo 172º, n.º 1, do Código Penal e pelo menos 8 crimes de abuso sexual de crianças previstos e punidos pelo artigo 172º, n.º 1, e 2, também do Código Penal.
A versão do arguido - de que nada praticou - não colhe, considerando a fidedignidade da prova contra si avolumada.
Os indícios são efectivamente fortes, pois que se repetidos em sede de julgamento, devidamente sujeitos ao contraditório, redundarão numa pena de prisão efectiva e tal resulta desde logo das regras de concurso constantes do artigo 77º do Código Penal, pois que dificilmente o arguido seria condenado numa pena de três anos suspensa na sua execução. É que não tendo o arguido ainda sido condenado certo é que apresenta um historial de relações sexuais com menores de idade inferior a 16 anos. Os factos estarão é certo prescritos não sendo passíveis de perseguição criminal per si, mas são obviamente relevantes para efeitos do disposto no art. 72.º do Código Penal.
Tais factos - os ocorridos antes de 1998 - inculcam a ideia de que o arguido tem uma inclinação sexual para manter o tipo de relações sexuais que a lei pune, ou seja, as relações sexuais com menores de idade inferior a 16 anos. Não sendo o signatário médico não pode afirmar que estamos perante um comportamento compulsivo já que tal afirmação pode ser entendida como sendo um juízo pericial embora estejamos certos que não foi essa a intenção do Ministério Público. O que, como Juiz não escapa ao signatário, é a conduta reiterada, sistemática e persistente do arguido. Ora, se o arguido sempre actuou nas suas relações sexuais da forma descrita, mantendo-as em situação que a lei pune, as regras da experiência permitem a afirmação que as continuará a manter da mesma forma. E é este juízo de prognose que o Ministério Público fez, e bem. E fê-lo em concreto já que o arguido, não obstante referir que em 1982 se viu com ou sem razão envolvido em processo de jaez idêntica à do presente, não deixou de assumir exactamente o mesmo tipo de condutas que agora lhe é imputado. Em concreto e face à personalidade demonstrada pelo arguido existe um forte perigo de continuação da actividade criminosa. É esta continuação de actividade criminosa que em si é geradora de um alarme social e de uma intranquilidade pública. Para que estes perigos se verifiquem não é necessária uma revolta popular ou um motim. Basta tão...
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