Acórdão nº 171/13 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Março de 2013

Magistrado ResponsávelCons. Ana Guerra Martins
Data da Resolução20 de Março de 2013
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 171/2013

Processo n.º 875/12

  1. Secção

Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins

Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

  1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 58/2013:

    I – RELATÓRIO

    1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, em 06 de junho de 2012 (fls. 437 a 445), ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em 23 de maio de 2012 (fls. 391 a 433), para que seja apreciada a inconstitucionalidade das seguintes interpretações normativas:

    i) “(…) das normas legais em causa (arts. 21º e 25º DL 15/93) tendo por base a presunção ilícita de culpabilidade a título de tráfico de estupefacientes sem consideração do destino ao nível [d]a douta acusação pública e com colocação sobre o arguido [de] tal ónus de prova ao arrepio das mais elementares garantias de defesa, desde logo presunção de inocência e princípio «in dubio pro reo»”;

    ii) “(…) das mesmas normas legais sempre e quando permita a condenação pelo crime de tráfico de estupefacientes sem que se mostre provado que o destino a dar não é o consumo, havendo dúvida como expressamente decorre da própria decisão, com exigência de necessidade de prova expressa de destino diverso do consumo ao arrepio das mais elementares garantias de defesa, desde logo presunção de inocência e princípio «in dubio pro reo», atenta a relação de mútua exclusão existente entre ambas as normas legais e imposição de absolvição sob pena de violação do princípio da legalidade”;

    iii) “(…) de tais normas legais no sentido de ser admissível e necessária a condenação por prática de crime baseada em mero dolo de intenção, com antecipação significativa da tutela penal, que se não mostre acompanhada de qualquer resultado ou benefício colhido pelo agente, defendendo-se a desnecessidade de convocação do Direito Penal por violação dos princípios da proporcionalidade, adequação e igualdade” (fls. 450).

    Cumpre apreciar e decidir.

    II – FUNDAMENTAÇÃO

    3. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 21 de novembro de 2012 (cfr. fls. 469), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.

    Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.

    4. Apesar de autonomizadas, as duas primeiras questões confluem no mesmo sentido normativo (alegadamente) extraído dos artigos 21º e 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, nos termos do qual seria admissível condenar o recorrente pelo crime de tráfico privilegiado de estupefacientes, mesmo que não se produzisse prova acerca do destino a dar às substâncias proibidas semeadas e cultivadas pelo recorrente, ou seja, da prova de que as mesmas não se destinavam apenas ao consumo próprio.

    Ora, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade é que as normas ou interpretações normativas cuja inconstitucionalidade é suscitada tenham sido aplicadas pela decisão recorrida. Não é manifestamente o que se verifica no presente caso. Com efeito, não só a decisão recorrida configura o crime de tráfico de estupefacientes – na senda de toda a doutrina juspenalista – como um crime de perigo abstrato, como a decisão recorrida expressamente dá por provado que as substâncias estupefacientes não se destinavam a consumo próprio e, portanto, visavam a sua comercialização ou partilha com terceiros. Assim se pronunciou, inequivocamente, a decisão recorrida:

    “Este tipo de crime é, [em] ambos os casos, um crime de perigo abstrato ou presumido, que tutela a saúde e a integridade física dos cidadãos, concretamente a saúde pública.

    Enquanto crime de perigo, consuma-se com a mera criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido, integrando, por isso também a categoria dos chamados crimes exauridos ou de empreendimento, através dos quais se tutela antecipadamente um bem jurídico, recuando-se tal proteção a momentos anteriores a qualquer manifestação danosa” (fls. 409).

    E, mais adiante:

    “Por outro lado, demonstrou-se que tais plantas tinham um peso líquido de 2.960,846 e capacidade para gerar 676 doses diárias, em função da quantidade média correspondente ao consumo diário individual, concluindo-se ainda que o arguido adotou tais comportamentos de forma livre, voluntária e consciente.

    Com base em tais factos e conjugando-os com as regras da experiência comum, já se avançou em sede de motivação dos factos que não é crível que o arguido destinasse tais substâncias unicamente ao seu consumo, o que voltamos aqui a deixar claro.

    Com efeito, é certo que não existe nenhum limite que trace neste campo quantitativo a fronteira entre o consumo e o tráfico, mas a experiência comum, baseada nas circunstâncias a que já aludimos, e a indicação fornecida pelas tabelas dos quantitativos máximos diários normais de consumo (cf. Portaria n.º 94/96, de 26 de março) são fatores preponderantes aos quais não podemos deixar de lançar mão para chegar à referida conclusão.” (fls. 410)

    Em suma, resulta da decisão recorrida – sem qualquer margem para dúvidas – que a mesma não aplicou, enquanto critério determinante do seu juízo condenatório, qualquer das interpretações normativas identificadas pelo recorrente nas alíneas i) e ii) do seu requerimento de interposição de recurso, pelo que, por força do artigo 79º-C da LTC, fica vedada a possibilidade de conhecimento do objeto do recurso, quanto esta parte.

    5. Já quanto à terceira interpretação, segundo a qual seria “admissível e necessária a condenação por prática de crime baseada em mero dolo de intenção, com antecipação significativa da tutela penal, que se não mostre acompanhada de qualquer resultado ou benefício colhido pelo agente”, o que o recorrente contesta é, no fundo, a própria configuração do crime de tráfico de estupefacientes como um “crime de perigo abstrato”, por considerar – e bem – que ele prescinde da verificação de determinado resultado típico.

    No que diz respeito a esta questão deve notar-se que o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade da interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida, ou seja, da interpretação que configurou o crime de tráfico de estupefacientes como um mero “crime de perigo abstrato” de forma expressa e adequada, o que deveria ter feito, atenta a centralidade da distinção entre “crimes de perigo” e “crimes de resultado”, no âmbito da dogmática juspenalista. Ou seja, deveria ter confrontado o tribunal recorrido com a inconstitucionalidade de tal interpretação.

    Ora, o recorrente apenas esboça, no § X das suas conclusões (fls. 278), uma tímida alusão à – por si defendida – impossibilidade de condenação “sem que se mostre o mesmo concretizado em qualquer resultado para o qual a conduta do arguido tenha contribuído decisivamente”. Sucede, porém, que esta referência genérica aparenta pressupor que todos os ilícitos típicos penais descrevem...

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