Acórdão nº 19/15 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Janeiro de 2015

Magistrado ResponsávelCons. Fernando Vaz Ventura
Data da Resolução14 de Janeiro de 2015
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 19/2015

Processo n.º 957/14

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Fernando Ventura

Acordam, em Conferência, no Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, o réu A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (doravante “LTC”), do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 22 de maio de 2014. Nesse acórdão, apreciando o recurso da decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Celorico de Basto em 2 de outubro de 2013 que considerou ilegítima a recusa do réu em se submeter a recolha de material biológico para realização de teste de ADN e o condenou em multa, a impugnação foi julgada parcialmente procedente, dando sem efeito a condenação em multa, mas confirmando a decisão recorrida no que respeita à qualificação da recusa como ilegítima.

    2. Pela decisão sumária n.º 754/2014, proferida ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, foi decidido não tomar conhecimento do objeto do recurso, com os seguintes fundamentos:

      (…) 4. No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a conformidade constitucional de normas ou interpretações normativas, e não apreciar alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do recurso de amparo ou de queixa constitucional contra atos concretos de aplicação do Direito. Não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar os factos materiais da causa, definir a correta conformação da lide ou fixar a melhor interpretação do direito ordinário.

      Assim, por imperativo do artigo 280.º da Constituição, objeto do recurso (em sentido material) são exclusiva e necessariamente normas jurídicas, tomadas com o sentido que a decisão recorrida lhes tenha conferido, sem que caiba ao Tribunal Constitucional sindicar a atuação dos demais tribunais, a partir da direta imputação de violação da Constituição – mormente no plano dos direitos fundamentais - por tais decisões.

      Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, como ocorre no presente caso, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de modo reiterado e uniforme, que são pressupostos específicos deste tipo de recurso, de verificação cumulativa, (i) a suscitação pelo recorrente da questão de inconstitucionalidade “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), (ii) a efetiva aplicação, expressa ou implícita, da norma ou interpretação normativa, em termos de a mesma constituir “ratio decidendi” ou fundamento jurídico determinante da decisão proferida no caso concreto, e (iii) o esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam (n.º 2 do artigo 70.º da LTC).

      Vejamos se, no caso presente, se mostram preenchidos os referidos pressupostos de admissibilidade do recurso.

      5. Dos termos do requerimento de interposição de recurso, o qual conforma o seu objeto, verifica-se, pese embora a sua prolixidade, que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional de “normas” extraídas interpretativamente do disposto no artigo 417.º, n.ºs 2 e 3, alínea a), do Novo Código de Processo Civil (NCPC). O sentido das “normas” que o recorrente pretende colocar a controlo encontra-se enunciado em duas alíneas distintas, sinalizando que se pretende colocar outras tantas questões de inconstitucionalidade distintas, formuladas nos seguintes termos: (i) “para a legitimidade da recusa aí prevista é a violação da integridade física ou moral que se enquadra no normativo desse artigo 417º, que não se verifica em caso de exame de ADN, e que fora do quadro traçado pelo legislador ordinário nas três alíneas do n.º 3 daquele artigo a recusa é ilegítima e que, assim e sempre - e sem necessidade de se olhar ao caso e circunstâncias concretas reveladas já pelo processo judicial em curso - o direito à reserva e à intimidade da vida privada e familiar, direito ao bom nome e à imagem de que goza o demandado são ponderados em abstrato e fora das circunstâncias concretas e reveladas pelos autos e não são nunca violados em face aos valores que se perseguem com a exigência da colaboração com o Tribunal (acesso à justiça, realização da Justiça etc.) e ao direito ao estabelecimento da identidade da autora, que assim prevalecem sempre, pelo que a recusa à submissão a esse exame é sempre ilegítima” e (ii) “no âmbito da recusa legitima prevista nessa normas só se subsume o que nele consta nas alíneas do seu n.º 3, sendo ilegítima a escusa mesmo quando a mesma se funde no facto do despacho que ordena o respetivo exame ter sido objeto de recurso ainda não transitado em julgado na data em que está designada a sua realização”.

      6. Ora, é de afastar o conhecimento do recurso, porquanto não foi suscitada perante o tribunal recorrido, de forma processualmente adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.

      Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo “de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir”, o que reclama que o recorrente identifique, de forma clara, precisa e expressa, a norma ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma que tem por violador da Lei Fundamental (Acórdão n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). E constitui orientação pacífica deste Tribunal que, quando se questiona uma interpretação de determinada norma, “esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-se ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a Constituição” (Acórdão n.º 367/94, disponível no mesmo sítio da internet).

      Esta exigência apresenta-se como um corolário da natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso - para reapreciar uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter anteriormente apreciado e decidido, e não dirimir “questões novas”.

      7. No caso, se atentarmos nas conclusões da motivação do recurso de apelação – única peça processual dirigida ao Tribunal a quo -, verificamos que o recorrente não autonomizou, de forma minimamente clara e expressa, qualquer critério ou padrão normativo – enquanto regra abstrata, potencialmente aplicável a uma generalidade de situações – extraível das disposições legais indicadas.

      Ao invés, é manifesto que os problemas de constitucionalidade suscitados incidem sobre a própria decisão jurisdicional, que, conforme expressamente alegado pelo recorrente, “viola, por inaplicação e por errada interpretação, o disposto no artigo 417.º, números 2 e 3, alínea a), do NCPC e as demais normas e princípios constitucionais adiante referidos (…)” (8.ª conclusão; vd. igualmente a 5ª conclusão), decorrendo, assim, o vício invocado, não da aplicação de uma interpretação normativa inconstitucional extraída das referidas disposições, mas da opção jurisdicional adotada no plano da definição do direito infraconstitucional aplicável, tida por errada. Aliás, o recorrente é explícito na afirmação de de que o disposto naqueles preceitos não teve a aplicação que entendia devida, o que volta a encontrar lugar na 18ª conclusão, mormente na invocação de “ilegalidades”. Note-se ainda que a 37ª e 42.º conclusões colocam problema de constitucionalidade distinto daqueles referidos no requerimento de interposição de recurso, centrado na condenação em multa antes do trânsito em julgado da decisão que a recolha de ADN, sanção revogada pela decisão recorrida.

      Nestes casos, é jurisprudência pacífica e reiterada que, não estando em causa uma dimensão normativa do preceito legal aplicado na decisão como ratio decidendi, mas sim a própria decisão jurisdicional, mesmo que com recurso a argumentos fundados na aplicação direta de regras e princípios constitucionais, não há lugar a fiscalização concreta de constitucionalidade. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º, n.º 1, da LTC. Na verdade, ainda que se entenda formulada no recurso para a relação uma concreta questão de inconstitucionalidade dirigida ao ato de julgamento impugnado, sobre a qual o Tribunal a quo possa e deva tomar posição na busca da solução do caso, o facto é que uma tal invocação, por não se tratar da suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, não abre via de recurso para o Tribunal Constitucional.

      8. Inverificado o pressuposto insuprível de prévia suscitação adequada das questões de inconstitucionalidade inscritas no requerimento do interposição de recurso perante o tribunal a quo, o que determina a ilegitimidade do recorrente, impõe-se concluir pela impossibilidade de conhecer do objeto do recurso e, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, pela prolação de decisão sumária.

      9. Acrescente-se que as questões colocadas e transcritas supra voltam a remeter para a sindicância do ato de julgamento, e não para o controlo da constitucionalidade de ato do poder normativo, mormente de norma ou interpretação normativa extraída do artigo 417.º do NCPC e aplicada no caso. Na verdade, quando o recorrente remete para a apreciação de uma norma “fora do quadro traçado pelo legislador ordinário nas três alíneas do n.º 3 daquele artigo” [cfr. al. a)], e quando procura ver apurado se “no âmbito da recusa legítima prevista nessas normas só se subsume o que nele consta nas alíneas do...

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