Acórdão nº 19/19 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Janeiro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Maria José Rangel de Mesquita
Data da Resolução09 de Janeiro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 19/2019

Processo n.º 1427/17

3.ª Secção

Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (TAF de Sintra), em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., Lda., o primeiro interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (cfr. fls. 65-66), com fundamento no artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, 75.º, n.º 1 e 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designado pela sigla LTC), do despacho do TAF de Sintra (cfr. fls. 50-60) de 31 de outubro de 2017 que - decidindo a impugnação judicial interposta pela ora recorrida de decisão condenatória contra-ordenacional - recusou a aplicação das normas dos artigos 37.º e 77.º, n.º 1, alínea j) e n.º 2, do Regulamento Municipal da Urbanização e Edificação de Cascais (Regulamento n.º 78/2013, publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 48, de 8 de março de 2013), por entender que as referidas normas regulamentares foram criadas e aplicadas sem lei habilitante para tal e, assim, padecerem de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), com referência ao artigo 32.º, n.º 10, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

2. O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, tem o seguinte teor (cfr. fls. 65-66):

«A Magistrada do Ministério Público, junto deste Tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, al. a), 72º, nº 1, al. a) e 3, 75°, n° 1 e 75°- A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15/11, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 143/85, de 26/11, 85/89, de 7/9, 88/95, de 1/9 e 13-A/98, de 26/2 e Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30/11), vem interpor RECURSO OBRIGATÓRIO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da douta decisão proferida nos autos à margem referenciados, dado que:

1 - Com fundamento na desaplicação das normas constantes dos artigos 37.° e 77.°, n.º 1, al. j) e n.º 2, do Regulamento nº 78/2013, de 09/03 - Regulamento da Urbanização e Edificação do Município de Cascais (RUEM), publicado no DR, 2.ª Série, n° 48, de 08/03/2013, por terem sido consideradas inconstitucionais, por violação do artigo 165, n° 1, d), com referência ao artigo 32, n° 10, ambos da CRP.

2 - A douta decisão recusou a aplicação das citadas normas, por ter considerado que as mesmas padecem de inconstitucionalidade orgânica, por a Autoridade Administrativa ter criado e aplicado as referidas normas do RUEM de Cascais, sem lei habilitante para tal, violando o princípio da reserva relativa de competência legislativa, prevista no artigo 165º, n° 1, d), com referência ao artigo 32, n° 10, da mesma CRP, que determina que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, sobre: «d) Regime geral de punição das infrações disciplinares, bem como dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo;».

3 - Pretende-se assim ver apreciada a inconstitucionalidade das citadas normas constantes dos artigos 37 e 77, n° 1, alínea j) e 2 do RUEM de Cascais.

4 - O presente recurso é processado como o de apelação, com efeito suspensivo (artigos 143°, n° 1, do CPTA, 644°, n° 1, alínea a), do CPC e 78°, n° 2, da LTC), com subida imediata, nos próprios autos, e interrompe os prazos para a interposição dos recursos ordinários que caibam da decisão, nos termos dos artigos 75° e 78, n° 2, da LTC.

Nestes termos, requer-se a V. Exa., que se digne admitir o presente recurso e feito o mesmo subir, com o efeito próprio, seguindo os demais termos legais.»

3. A relatora proferiu despacho para as partes virem aos autos proferir as alegações nos seguintes termos (cfr. fls. 75):

«Notifiquem-se as partes para alegar, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias, nos termos dos artigos 78.º-A, n.º 5, e 79.°, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão.».

4. O recorrente apresentou alegações e concluiu pela não inconstitucionalidade das normas objeto do recurso, nos seguintes termos (cfr. fls. 77-88):

«Alegando nos autos em epígrafe, diz o recorrido Ministério Público:

I

(Recurso)

1. Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos arts. 70.º, n.º 1, al. a), e 72.º n.º 1, al. a) e 3, 75.º, n.º 1, e 75.º-A, todos da LOFPTC, da douta decisão proferida nos autos à margem referenciados [de proc. n.º 688/17.3BESNT, do TAF de Sintra – UO 3, 12.ª espécie - Recurso de contra-ordenação / Recurso judicial de decisão de aplicação de coima, em que é R. A., Lda. e recorrida a Câmara Municipal de Cascais, fls. 52 a 60], “1- Com fundamento na desaplicação das normas constantes dos artigos 37.º e 77.º, n.º 1, al. j) e n.º 2, do Regulamento n.º 78/2013, de 09/03 – Regulamento de Urbanização e Edificação do Município e Cascais (RUEM) publicado no DR, 2.,ª série, n.º 48, de 08/03/2013, por terem sido consideradas inconstitucionais, por violação do artigo 165, nº 1, d), com referência ao artigo 32.º, n.º 10, ambos da CRP; 2- A douta decisão recusou a aplicação das citadas normas, por ter considerado que as mesmas padecem de inconstitucionalidade orgânica, por a Autoridade Administrativa ter criado e aplicado as referidas normas do RUEM de Cascais sem lei habilitante para tal, violando o princípio da reserva relativa de competência legislativa prevista no artigo 165º, nº 1, d), com referência ao artigo 32, n.º 10, da mesma CRP, que determina que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, sobre: «d) Regime geral de punição das infrações disciplinares, bem como dos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo» 3- Pretende-se assim ver apreciada a constitucionalidade dos artigos 37 e 77, n.º 1, alínea j) e 2 do RUEM de Cascais” (fls. 65 e 66).

II

(Questão de constitucionalidade)

a) Autonomia local

2. O RUEM enceta logo com a invocação da respetiva habilitação legal, no seguintes termos: “Artigo 1.º (Lei habilitante): O Regulamento da Urbanização e Edificação, de ora em diante designado por RUEM, é elaborado e aprovado ao abrigo do disposto no artigo 241.º da Constituição da República Portuguesa, no uso da competência conferida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 53.º e da alínea a) do n.º 6 do artigo 64.º, ambas da Lei n.º 169/99 [doravante, RJFMF], de 18 de setembro, alterada pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de janeiro, e do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, com as alterações e na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 26/2010, de 30 de março [doravante, RJUE]”.

Para aferir do seu real alcance, e bem poder resolver a questão de constitucionalidade, importa situar o poder regulamentar das autarquias locais no quadro das decisões valorativas fundamentais (da “ordem de valores”) da Constituição, no caso quanto à garantia institucional da “autonomia local”.

3 . O artigo 241.º da Constituição, com efeito, expressa uma norma de competência (que investe as “As autarquias locais […] de poder regulamentar próprio nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar”.

Qual o sentido do adjetivo “próprio” com que a lei constitucional qualifica o poder normativo das autarquias locais?

Para o aprender acertadamente, é mister trazer à colação a garantia institucional da “autonomia local”, consubstanciada no reconhecimento de autarquias de “população e território”, com fins múltiplos, das quais emana uma “vontade local” específica e diversa da “vontade geral”, expressa por órgãos representativos, livremente eleitos e com autonomia para se darem a sua própria “lei”, em ordem à prossecução de interesses das respetivas populações [Constituição, arts. 6.º, 235.º, n.º n.ºs 1 e 2, 237.º, n.º 1, e 267.º, n.º 2, e 288.º, al. n)] 1 [1 J. BAPTISTA MACHADO, Participação e descentralização (…), Livraria Almedina, 1982, 6 a 9.]

Deste sentido profundo da norma constitucional de competência, que não foi considerado pela decisão recorrida, procedem relevantes corolários para a correta compreensão do significado e alcance dos regulamentos autónomos (das autarquias locais) que são o cerne da questão de constitucionalidade versada no presente recurso.

b) Idem: regulamentos autónomos

4 . Com efeito, como discorre a doutrina mais autorizada, ainda no domínio da versão fundadora da Constituição, “A administração indirecta ou descentralizada tem por definição ou por natureza um poder regulamentar próprio ou autónomo. Nisto se traduz a sua “autonomia”. Daqui decorre que tal poder não lhe é delegado pelo Estado-administrador”. Adiante, advoga que “(…) os regulamentos autónomos podem situar-se neste domínio e designadamente intervir no âmbito dos direitos de propriedade e liberdade e dos direitos fundamentais em geral” e, ainda mais incisivamente, “Esta competência regulamentar [das autarquias locais] tem de específico, como já atrás dissemos, poder constitucionalmente abranger o próprio domínio das matérias reservadas à lei e em especial o domínio da propriedade, da liberdade e das penas. Os regulamentos do Governo não podem criar impostos nem impor penas – mas as autarquias locais não sofrem deste discriminação constitucional, podendo os seus regulamentos ter um conteúdo mais amplo do que aquele que é permitido aos regulamentos do Governo:...

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