Acórdão nº 728/17 de Tribunal Constitucional (Port, 15 de Novembro de 2017

Magistrado ResponsávelCons. Maria Clara Sottomayor
Data da Resolução15 de Novembro de 2017
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 728/2017

Processo n.º 773/2016

3.ª Secção

Relatora: Conselheira Maria Clara Sottomayor

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

1. A Entidade Reguladora da Saúde – ERS instaurou contra A., psicóloga clínica que exerce a sua profissão em consultório integrado num estabelecimento coletivo de saúde (Clínica), processo de contraordenação, nos termos dos artigos 4.º, 5.º, 10.º e 22.º do Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto e do artigo 15.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 371/2007.

Em concreto, imputou aquela entidade reguladora à aqui Recorrida a prática das seguintes contraordenações: i) inobservância do dever de inscrição do estabelecimento prestador de cuidados de saúde (psicologia) no registo da Entidade Reguladora da Saúde – ERS (artigos 61.º, n.º 2, alínea a) e 26.º, n.º 3, do Estatuto da ERS) e ii) não disponibilização de livro de reclamações no estabelecimento a que respeita a atividade (artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e 9.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 156/2006, de 15 de setembro).

Por decisão datada de 7 de março de 2016, a ERS aplicou à Recorrida a coima única de € 1.400 pela prática, em concurso, das duas contraordenações acima referidas (fls. 37).

Inconformada com tal decisão, a arguida apresentou recurso de impugnação judicial no Tribunal da Concorrência, Supervisão e Regulação. O recurso mereceu despacho de admissão (fls. 79).

Além disso, foi proferido pelo juiz a quo, após exercício do contraditório, despacho recusando a aplicação do artigo 67.º, n.º 5, dos Estatutos da ERS – na parte em que condiciona a obtenção de efeito suspensivo do recurso à prestação de caução em substituição da coima – por violação do disposto nos artigos 2.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, n.º 5 e 32.º, n.º 2 e n.º 10, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Em consequência, o Tribunal da Concorrência determinou o prosseguimento dos autos com a atribuição de efeito suspensivo ao recurso de impugnação interposto, sem prestação de caução, nos termos constantes do artigo 59.º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (RGCOC) e do artigo 408.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal (CPP), aplicável por remissão do artigo 41.º, n.º 1, do RGCOC.

O tribunal recorrido notificou a arguida, para esta, querendo, apresentar, no prazo de dez dias, prova documental quanto à sua situação económica.

Em resposta, a arguida, A., veio apresentar a declaração de IRS do ano de 2015, na qual constava como valor do rendimento anual do consultório, 11.347,70 euros, tendo ainda declarado que em 2016 auferiu 11.683,10 euros, que o marido é artista plástico e não tem qualquer rendimento, e que o agregado familiar, composto por três pessoas, tem a seu cargo uma filha de 18 anos, estudante (fls. 124 a 135).

Neste enquadramento, o Ministério Público apresentou o seguinte requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional:

«O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal vem, ao abrigo do disposto nas normas dos artigos 280º, nº 1, a), da CRP, 70º, nº 1, a), 72º, nº 1, a) e nº 3 da Lei 28/82, de 15/11 (Lei do Tribunal Constitucional), alterada pelas Leis 85/89, de 07/09 e 13-A/98, de 26/02, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do despacho judicial proferido a 12/07/2016, que consta de fls. 96 a 114, por via do qual o tribunal desaplicou a norma do artigo 67, nº 5 dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde publicados em anexo ao DL 126/2014, de 22/08, por entender que a mesma viola as normas dos artigos 2º, 16º, 17º, 18º, 20º, nº 5, 32º, nº 2 e 10 da CRP.

O recurso tem efeito suspensivo e sobe nos próprios autos - art. 78º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional.

As alegações serão produzidas no TC, nos termos do disposto no art. 79º da Lei do Tribunal Constitucional.

O MP junto deste TCRS pronunciou-se sobre a questão da constitucionalidade, como consta da peça apresentada a 17/06/2016 que consta de fls. 86 a 90.

Como precedente que corrobora a tese contrária à perfilhada pelo tribunal, confrontar o Ac. do TC 376/2016 que julgou não inconstitucional a norma do art. 84º, nº 4 e 5, da Lei 19/2012, de 08/05, segundo a qual a impugnação de decisões da AdC que apliquem coimas tem como regra efeito devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste caução».

2. Admitido o recurso neste Tribunal, veio o Ministério Público alegar, propugnando pela constitucionalidade da norma e formulando as seguintes conclusões (fls. 206 a 243):

«1ª. O presente recurso do Ministério Público vem interposto do despacho do 1º Juízo do Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão, de 12 de Julho de 2016, proferido no Proc. 143/16.9YUSTR, enquanto decidiu «declarar a inconstitucionalidade material e, em consequência, recusar a aplicação do artigo 67.º, n.º 5 dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de Agosto, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 2.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, n.º 5, 32.º, n.º 2 e 10, todos da Constituição da República Portuguesa» atribuindo efeito suspensivo, sem determinar a prestação de caução, ao recurso da decisão final sancionatória da Entidade Reguladora da Saúde (ERS).

2ª. O objeto do presente recurso de constitucionalidade deverá restringir-se à norma contida no nº 5 do art. 67º dos Estatutos da ERS, com o sentido de que a impugnação interposta de decisões da ERS que apliquem coima tem, em regra, efeito devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste efetivamente caução, em sua substituição, no prazo fixado pelo tribunal, sendo-lhe estranha a questão da exigência da prestação de caução, nos termos ai previstos, sem que esteja acautelada a potencial situação de insuficiência de bens económicos.

3ª. O DL 126/2014, de 22 de Agosto, diploma sem alterações até à data, procede a repetida reestruturação da ERS, à luz do regime estabelecido na lei-quadro das entidades reguladoras, que fora aprovada em anexo à Lei 67/2013, de 28 de Agosto, revogando o DL 127/2009, de 27 de Maio e aprovando os novos Estatutos (respetivamente, arts. 6º e 2º).

4ª. A atribuição, como regra, de efeito meramente devolutivo ao recurso de decisões sancionatórias proferidas pela ERS em processos contraordenacionais vai ao arrepio do regime geral nos domínios contraordenacional e penal, mas encontra paralelismo no regime de recursos das decisões de outras entidades administrativas independentes e, na administração direta do Estado, de recursos das sentenças, em matéria de coimas aplicadas pela Administração Tributária e Aduaneira.

5ª. É sobre o novo regime do recurso, tal como passou a constar do nº 5 do art. 67º dos Estatutos da ERS, que incide o juízo de inconstitucionalidade expresso na decisão recorrida.

6ª. Tal juízo assenta em dois distintos fundamentos, ambos igualmente dimensionados à luz do princípio da proporcionalidade (art. 18º, nº 2 da Constituição): (i) violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, por desproporcionada restrição do mesmo – arts. 20º, nº 5 e 18º, nº 2 da Constituição e (ii) violação do princípio de presunção de inocência – art. 32º, nº 2 da Constituição.

7ª. A declaração de inconstitucionalidade contida na decisão recorrida convoca cumulativamente os arts. 2º (Estado de direito democrático), 16º (âmbito e sentido dos direitos fundamentais) e 17º (regime dos direitos, liberdades e garantias) da Constituição – a operada convocação, contudo, na economia da decisão recorrida, conforma-se como mero corolário das proposições anteriormente estabelecidas, quanto à violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, por desproporcionada restrição do mesmo e à violação do princípio de presunção de inocência.

8ª. No que respeita à declarada violação do princípio de presunção de inocência, a decisão recorrida expressamente toma «como referência de análise o acórdão do Tribunal Constitucional n° 198/90», embora admitindo «que neste aresto estava em causa uma situação diferente e mais flagrante do que a solução normativa em análise».

9ª. «Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade direta e global aos processos contra ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal», completada tal afirmação com «a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal».

10ª. Sufragada na jurisprudência constitucional a aplicação do princípio da presunção de inocência do arguido, no seu núcleo essencial, a demais procedimentos sancionatórios, desde logo no domínio disciplinar, como no caso do Ac. 198/90, referenciado na decisão recorrida, mas também, no que ora diretamente releva, no domínio contraordenacional.

11ª. O referenciado Ac. 198/90, para declarar «inconstitucional a norma do artigo 37.º do Regulamento Disciplinar aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, aplicável ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos, na parte em que permite a perda total do vencimento do funcionário “desligado do serviço” por contra ele haver sido instaurado processo disciplinar», entendeu que tal regime «além de se traduzir na antecipação de um quadro de efeitos semelhantes aos da pena disciplinar de demissão, revela-se também afrontador do princípio da proporcionalidade postulado pelo princípio do Estado de direito democrático, dada...

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