Acórdão nº 641/18 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Novembro de 2018

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução27 de Novembro de 2018
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 641/2018

Processo n.º 139/17

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão instrutória proferida por aquele Tribunal que pronunciou o arguido pela prática – de que ia acusado – de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social.

2. O recorrente interpôs recurso daquela decisão para o Tribunal Constitucional, reputando de inconstitucionais:

«a) a norma que resulta da conjugação dos artigos 105.º e 107.º-1, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (RGIT);

b) a interpretação ou dimensão normativa do artigo 107.º, do RGIT, segundo a qual não é aplicável ao crime em tal artigo tipificado o limite de 7.500,00 euros, limite esse constante do artigo 105.º-1, do mesmo RGIT, nem, aliás, qualquer outro limite.

aplicando pois a decisão instrutória em causa a norma e a interpretação ou dimensão normativa atrás referidas, cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada pelo requerente durante o processo, e, mais precisamente, no requerimento de abertura de instrução, inconstitucionalidade essa resultante da violação, no caso da alínea a) anterior, do principio constitucional da legalidade penal, plasmado, designadamente, no artigo 29.º-2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e, no caso da anterior alínea b), do princípio da dignidade penal, o qual tem também cariz constitucional, o que decorre do artigo 18.º-2 da CRP.»

3. Nas suas alegações de recurso, o recorrente apresentou as seguintes conclusões:

«PRIMEIRA CONCLUSÃO

A norma, que resulta da conjugação dos artigos 105.º e 107.º, os dois do RGIT, não sendo, como não é, uma norma precisa, facilmente, e sem margem para quaisquer dúvidas, apreensível pelos cidadãos em geral, nem mesmo pelos Juízes, incluindo os do Supremo Tribunal de Justiça, padece do vício da inconstitucionalidade, por violação do princípio segundo o qual nullum crimen sine lege certa, princípio esse que constitui uma vertente do Princípio Constitucional da Legalidade Penal, que encontra acolhimento, designadamente, no artigo 29.º-2, da CRP.

SEGUNDA CONCLUSÃO

Isto, por um lado, enquanto que, por outro lado, a interpretação ou dimensão normativa, do artigo 107.º, do RGIT, segundo a qual não é aplicável ao crime em tal artigo previsto, o limite de 7.500,00 euros, constante do artigo 105.º-1, do mesmo RGIT, nem aliás qualquer outro limite, possibilitando, como possibilitaria, que a não entrega à segurança social de, por exemplo, um cêntimo que fosse, de quotizações deduzidas, constituísse a prática de um crime, cuja pena, abstratamente aplicável, poderia ser de prisão até 3 anos, sempre seria violadora do Princípio da Dignidade Penal, o qual tem também cariz constitucional, encontrando uma positivação, nomeadamente no artigo 18.º, da CRP, sendo pois tal interpretação ou dimensão normativa, inconstitucional.

TERCEIRA CONCLUSÃO

Inconstitucionalidades essas que aqui ficam, desde já, e para os devidos e legais efeitos, invocadas.

QUARTA CONCLUSÃO

Devendo por isso, na opinião do recorrente, e sem que isso possa constituir, nem constitua, qualquer demérito, por pequeno, ou mínimo até, que seja, para com a Ilustre Senhora Doutora Juíza de 1ª Instância que prolatou a decisão sob crítica, deverá esse tribunal:

a) julgar inconstitucional a norma que resulta da conjugação dos artigos 105.º e 107.º, ambos do RGIT, bem como a interpretação ou dimensão normativa do artigo 107.º, do RGIT, segundo a qual não é aplicável ao crime em tal artigo tipificado o limite de 7.500,00 euros, limite esse constante do artigo 105.º-1, do RGIT, nem aliás qualquer outro limite;

e, em consequência

b) conceder provimento ao recurso em causa, determinando-se a baixa dos autos ao tribunal recorrido, para que a decisão sob recurso aí seja reformada de acordo com o julgamento de inconstitucionalidade atrás referido, como determina o artigo 80.º, da LTC».

4. O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela não inconstitucionalidade, com suporte na jurisprudência constitucional tirada, fundamentalmente, nos Acórdãos n.º 428/2010 e n.º 97/2011, mas também nos Acórdãos n.º 279/2011, n.º 283/2013 e n.º 707/2014. Reiterou ainda o Ministério Público a análise por si já desenvolvida no âmbito do processo em que viria a ser prolatado o primeiro dos Acórdãos acabados de indicar.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

5. O recorrente formula duas questões de constitucionalidade relativas aos artigos 105.º e 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, invocando, em cada qual, a violação de distintos parâmetros constitucionais (sublinhados acrescentados):

5.1. Contende o recorrente, em primeiro lugar, que «[a] norma, que resulta da conjugação dos artigos 105.º e 107.º, os dois do RGIT, não sendo, como não é, uma norma precisa, facilmente, e sem margem para quaisquer dúvidas, apreensível pelos cidadãos em geral, nem mesmo pelos Juízes, incluindo os do Supremo Tribunal de Justiça, padece do vício da inconstitucionalidade, por violação do princípio segundo o qual nullum crimen sine lege certa, princípio esse que constitui uma vertente do Princípio Constitucional da Legalidade Penal, que encontra acolhimento, designadamente, no artigo 29.º-2, da CRP». Embora, assim formulada, esta questão de constitucionalidade não seja absolutamente clara, depreende-se dos autos – em particular, da referência ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2010 – que o recorrente se reporta especificamente ao segmento do artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, que estatui que a conduta aí tipificada é punida «com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º». Naquele Acórdão acolheu-se o entendimento de que o limite de 7500 €, constante do n.º 1, do artigo 105.º, do RGIT, não se aplica ao crime previsto no n.º 1 do artigo 107.º do RGIT. Considera o recorrente que o próprio facto de ter sido promovido um recurso para fixação de jurisprudência quanto ao recorte típico da incriminação prevista no primeiro preceito indicado – para mais, «tirado com oitos votos de vencido, contra nove votos que fizeram vencimento» –, atesta a insuficiente clareza de tal incriminação.

5.2. Em segundo lugar, entende o recorrente que «a interpretação ou dimensão normativa, do artigo 107.º, do RGIT, segundo a qual não é aplicável ao crime em tal artigo previsto, o limite de 7.500,00 euros, constante do artigo 105.º-1, do mesmo RGIT, nem aliás qualquer outro limite, possibilitando, como possibilitaria, que a não entrega à segurança social de, por exemplo, um cêntimo que fosse, de quotizações deduzidas, constituísse a prática de um crime, cuja pena, abstratamente aplicável, poderia ser de prisão até 3 anos, sempre seria violadora do Princípio da Dignidade Penal, o qual tem também cariz constitucional, encontrando uma positivação, nomeadamente no artigo 18.º, da CRP, sendo pois tal interpretação ou dimensão normativa, inconstitucional».

6. Os preceitos legais em questão têm o seguinte teor:

«Artigo 105.º

(Abuso de confiança)

1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efetuada for superior a (euro) 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.

6 – (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro)

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária

«Artigo 107.º (Abuso de confiança contra a segurança social)

1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105.º.

2 - É aplicável o disposto nos nºs 4 e 7 do artigo 105.º. »

7. Como nota o Ministério Público nas suas contra-alegações de recurso, ambas as questões colocadas pelo recorrente foram já especificamente apreciadas pelo Tribunal Constitucional, que se tem...

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