Acórdão nº 636/18 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Novembro de 2018

Magistrado ResponsávelCons. Fernando Vaz Ventura
Data da Resolução22 de Novembro de 2018
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 636/2018

Processo n.º 876/16

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Fernando Ventura

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante LTC), do despacho judicial proferido em 8 de junho de 2016, pedindo a «apreciação da inconstitucionalidade da norma do art.º 7.º, n.º 5, do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 05/06 (...) [c]uja aplicação foi recusada, por ter sido julgada materialmente inconstitucional, no douto despacho de fls. 818 e 819, com fundamento no entendimento de que "a responsabilidade subsidiária dos gerentes ou administradores de uma pessoa coletiva ofende o principio constitucional da intransmissibilidade de responsabilidade criminal – n.º 3 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa"».

2. O presente recurso é incidente de processo comum pendente na 1.ª Secção Criminal da Instância Central da Comarca do Porto, no âmbito do qual a sociedade comercial A., Lda, foi acusada e pronunciada pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, 103.º, n.º 1, alínea b) e c), 104.º, n.º 1, alíneas d) e e), e n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho.

Com fundamento na impossibilidade de apurar o paradeiro dos legais representantes da arguida, foi esta declarada contumaz (fls. 593); posteriormente, foi junta aos autos certidão do registo comercial a atestar que aquela havia sido dissolvida, com registo do encerramento da liquidação e consequente cancelamento da matrícula (fls. 792).

Perante esse facto, o Ministério Público promoveu que fosse declarada extinta a responsabilidade criminal da referida sociedade arguida.

Sobre tal promoção recaiu o despacho judicial recorrido, cujo teor é o seguinte:

«(...)

Como resulta de fls. 792 e 793, a sociedade foi dissolvida por decisão administrativa, estando já encerrada a sua liquidação e cancelada a respetiva matrícula no registo comercial.

A sociedade considera-se extinta pelo registo do encerramento da liquidação – n.º 2 do artigo 160.º do Código das Sociedades Comerciais.

O n.º 2 do artigo 127.º do Código Penal apenas prevê a continuação do procedimento, em fase de execução, quando a extinção da pessoa coletiva seja posterior à condenação pela prática de crime.

Portanto, por princípio, a extinção da pessoa coletiva arrasta a extinção do procedimento criminal, atento o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade criminal – n.º 3 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.

Mas o n.º 5 do artigo 7.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, na sua literalidade (não distinguindo sequer entre falta de personalidade jurídica originária e falta de personalidade jurídica superveniente) impõe o prosseguimento do processo destinado a apurar a responsabilidade criminal da pessoa coletiva já extinta, fazendo correr sobre o património comum ou sobre o património de cada associado a responsabilidade pelo cumprimento da pena que vier a ser aplicada.

A responsabilidade subsidiária dos gerentes ou administradores de uma pessoa coletiva pelo pagamento da pena de multa aplicada por facto imputável à pessoa coletiva ofende o princípio constitucional da intransmissibilidade da responsabilidade criminal – o n.º 3 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa [como o Tribunal Constitucional teve ocasião de frisar, ao declarar com força obrigatória e geral a inconstitucionalidade da norma consagrada no antigo n.º 7 do artigo 8.º do RGIT (acórdão n.º 171/2014, publicado no Diário da República de 03 de Março de 2014)].

A norma consagrada no n.º 5 do artigo 7.º do RGIT é, por esse motivo, materialmente inconstitucional, também violando o princípio vertido no n.º 3 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa [numa situação em tudo similar à que integraria a hipótese legal da norma a que correspondia o anterior n.º 7 do artigo 8.º do RGIT (revogado pela Lei nº 75-A/2014, de 30 de Setembro), dando-se como reproduzidos, com a devida vénia, os fundamentos jurídicos do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 171/2014, acima referido], motivo pelo qual, atento o fixado no artigo 204º da Constituição da República Portuguesa, aqui se recusa a sua aplicação.

Assim, e atento o disposto no n.º 2 do artigo 127.º do Código Penal, declaro extinta a responsabilidade penal da sociedade “A., Lda”.»

3. Admitido o recurso e remetidos os autos a este Tribunal, foi determinado pelo relator o prosseguimento do recurso. Notificados os sujeitos processuais, apenas o recorrente apresentou peça de alegações, pugnando a final pela prolação de juízo negativo de inconstitucionalidade. Sintetizou conclusivamente a sua argumentação nestes termos:

«1.ª Recurso obrigatório do Ministério Público, interposto do Despacho proferido em 14 de Junho de 2016, no Proc. 3299/09.3TBGDM, pelo Exmo. Juiz junto do 1.ª Secção Criminal da Instância Central da Comarca do Porto, que recusou a aplicação da norma do n.º 5 do artigo 7.° do RGIT, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade criminal estabelecido no n.º 3 do artigo 30.° da Constituição.

2.ª O referido juízo de inconstitucionalidade normativa constitui ratio decidendi da diferente solução dada ao caso e a sindicância daquele, por intermédio do presente recurso, poderá utilmente determinar a reformulação da decisão final.

3.ª A decisão recorrida para, primeiramente, considerar a norma do n.º 5 do artigo 7.° do RGIT aplicável ao caso e, em seguida, recusar a sua aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, interpretou-a com o sentido de que a aí prevista “entidade sem personalidade jurídica” compreende uma sociedade entretanto extinta, nos termos do n.° 2 do art. 160.° do Código das Sociedades Comerciais.

4.ª É com o sentido indicado, que lhe foi interpretativamente atribuído pela decisão recorrida, que a norma jurídica deverá ser apreciada – com o sentido normativo por aquela decisivamente aceite e recusada a aplicação.

5.ª A decisão recorrida cumpriu o dever de fundamentação (arts. 205.º da Constituição e 97.º, nº 5 do CPP) através de simples remissão genérica para os fundamentos jurídicos do Acórdão do Plenário deste Tribunal 171/14, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade, por violação do artigo 30.º, n.º 3, da Constituição.

6.ª A decisão recorrida entendeu, para tanto, relativamente à norma do n.º 5 do art. 7.º do RGIT, que se estava «numa situação em tudo similar à que integraria a hipótese legal da norma a que correspondia o anterior n° 7 do artigo 8° do RGIT», preceito entretanto revogado pela Lei 75-A/2014, de 30 de Setembro.

7.ª O art. 7.º do RGIT, conforme a respetiva epígrafe, versa sobre a responsabilidade (responsabilidade criminal e contraordenacional) das pessoas jurídicas e equiparadas.

8.ª O n.º 5 do art. 7.º do RGIT, relativamente a entidades sem personalidade jurídica, inexistindo uma esfera patrimonial própria que possa responder pelo pagamento das multas ou coimas aplicadas, imputa este ao património comum dos associados e, subsidiariamente, na sua falta ou insuficiência, ao património próprio de cada um deles (respondendo solidariamente entre si).

9.ª Não resulta, salvo o devido respeito por opinião contrária, que haja aqui uma transferência de responsabilidade.

10.ª A apreciação desenvolvida no citado Ac. 171/14 (Plenário), o qual funda, por remissão em bloco, a decisão recorrida, não encontra correspondência na situação abstratamente regulada no n.º 5 do art. 7.º do RGIT.

11.ª Desde logo, a norma então vigente do n.º 7 do art. 8.º do RGIT, estabelecia, relativamente à infração cometida pela pessoa coletiva, não uma mera responsabilidade subsidiária, mas uma responsabilidade solidária (que decorria da colaboração dolosa na prática da infração e que se verificava independentemente da responsabilidade que ao gerente pudesse também caber a título pessoal).

12.ª Distinguindo as questões e separando os diferentes tipos de responsabilidade, o Ac. 171/14 procede introdutoriamente à convocação da jurisprudência que incidira sobre o regime da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelo pagamento das coimas aplicadas, em processo de contraordenação fiscal, a pessoas coletivas e que não julgara inconstitucional as normas dos arts. 8.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infrações Tributárias e 7.º-A do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Não Aduaneiras.

13.ª E, fundamentalmente, no quadro de previsão do n.º 5 do art. 7.º do RGIT, falta a tensão dialética examinada no Ac. 171/14: inexiste uma entidade coletiva, revestida de uma esfera jurídica própria, a quem pudesse ser imputada uma verdadeira responsabilidade autónoma, distinta das dos seus gerentes ou administradores, mas que com estas se devesse relacionar, nos termos do padrão legal estabelecido, cuja constitucionalidade é no mesmo Acórdão sindicada.

14.ª Em vista do exposto, não deverá validar-se a fundamentação, por intermédio da remissão operada na decisão recorrida, da declaração da inconstitucionalidade da norma do n.º 5 do art. 7.º do RGIT.

15.ª Não se antevê, para os efeitos previstos na 2ª parte...

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