Acórdão nº 331/19 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Maio de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Claudio Monteiro
Data da Resolução30 de Maio de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 331/2019

Processo n.º 599/17

1.ª Secção

Relator: Conselheiro Claudio Monteiro

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I - Relatório

1. Nestes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).

Invoca, como fundamento do recurso, a recusa de aplicação, pelo tribunal a quo, da interpretação do artigo 17.º G, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), no sentido de que, requerida a insolvência pelo administrador judicial provisório, esta deve ser automaticamente decretada, sem audiência do devedor, argumentando que tal recusa foi justificada por inconstitucionalidade, com base na violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

2. Os presentes autos de recurso inserem-se em acção especial de insolvência de pessoa colectiva, resultante de requerimento do administrador judicial provisório, com base em parecer sobre a situação de insolvência da devedora, na sequência de termo de processo especial de revitalização por encerramento do processo negocial sem acordo.

Por sentença da 1.ª Instância, considerou-se que o aludido requerimento do administrador judicial provisório, ex vi artigos 17.ºG, n.º 4, e 28.º, ambos do CIRE, implicava, sem necessidade de ulterior audição da devedora, a declaração de insolvência peticionada, razão por que foi a acção julgada procedente e, em consequência, foi a aqui recorrida declarada insolvente.

Inconformada, a devedora interpôs recurso da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Por Acórdão de 26 de abril de 2017, a apelação foi julgada procedente e, em consequência, foi revogada a sentença recorrida e substituída por decisão “que ordene a citação da devedora para, em dez dias, deduzir oposição, seguindo-se os demais termos do processo”.

O Tribunal da Relação considerou que, no presente caso, a devedora não aceitou o parecer do administrador judicial provisório, manifestando-se, pelo contrário, expressamente pela sua solvência. Contudo, não lhe foi dada a oportunidade de contraditar o referido parecer antes da prolação da decisão judicial que declarou a sua insolvência. Para tal tramitação foi decisiva a adopção, pelo tribunal de 1.ª Instância, de uma interpretação do artigo 17.º G, n.º 4, do CIRE, na redacção originária, introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, conducente ao sentido de que, sendo requerida a insolvência pelo administrador judicial provisório, esta deve ser automaticamente decretada, sem audiência do devedor. É esta interpretação que é expressamente recusada, com fundamento em inconstitucionalidade material, pelo Tribunal da Relação, no referido Acórdão de 26 de abril de 2017, que figura como decisão recorrida, no âmbito do presente recurso de constitucionalidade.

3. Notificado para apresentar alegações, o Ministério Público remeteu, no essencial, para a fundamentação constante dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, com os n.ºs 401/17 e 771/17, concluindo que a norma do artigo 17.º G, n.º 4, do CIRE, interpretada no sentido de que, requerida a insolvência pelo administrador judicial provisório, deve esta ser automaticamente decretada sem audiência do devedor, é inconstitucional por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição, que garante a todos o direito de acesso aos tribunais (n.º 1) determinando que esse direito deve ser exercido através de um processo equitativo.

4. A recorrida optou por não apresentar alegações.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos

5. O objecto do presente recurso, de acordo com a identificação feita pelo Ministério Público e o teor da decisão recorrida, corresponde à interpretação do artigo 17.º G, n.º 4, do CIRE, na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, conducente ao sentido de que, sendo requerida a insolvência pelo administrador judicial provisório, esta deve ser automaticamente decretada, sem audiência do devedor.

Não obstante não figurar a referência explícita ao disposto no artigo 28.º do mesmo diploma, a consequência do decretamento judicial da insolvência, sem prévia audição do devedor, resulta da remissão para esse preceito.

O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre esta dimensão normativa, com formulações substancialmente idênticas ou próximas, nomeadamente nos Acórdãos com os n.ºs 401/17, 771/17, 552/18 e 675/18, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

Assim, naquele primeiro aresto, com o n.º 401/17, pode ler-se o seguinte:

“(…) Retomando a questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos – por referência à norma do artigo 17.º-G, n.º 4, do CIRE, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência – está em causa o juízo de inconstitucionalidade proferido nos autos, tendo sido entendido decorrer do regime normativo em causa o desrespeito pelos princípios constitucionais plasmados no artigo 20.º da Constituição, em especial nos seus números 1 e 4.

Vejamos.

Assim dispõe o artigo 20.º da CRP:

«Artigo 20.º

Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva

1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

(…)

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

(…)»

Com efeito, o artigo 20.º da CRP garante a todos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente legítimos (n.º 1), determinando ainda que esse direito fundamental possa ser efetivamente exercido através de um processo equitativo (n.º 4).

O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º, CRP – enquanto «norma-princípio estruturante do Estado de Direito Democrático (art. 2.º)» (J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anotação ao artigo 20.º, p. 409) – constitui, porventura, a maior das garantias de defesa dos demais direitos fundamentais dos cidadãos, compreendendo o direito de ação ou de acesso aos tribunais, o direito ao processo perante os tribunais, o direito à decisão da causa pelos tribunais e o direito à execução das decisões dos tribunais (cfr. idem, p. 414).

Por seu turno, deve este direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, sobretudo na vertente do direito de ação, ser efetivado mediante um processo equitativo, que reclama, também nas palavras de. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira (cfr. ob. cit., p. 415): «(1) direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo (…); (2) o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas; (3) direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso (…); (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em tempo razoável; (6) direito ao conhecimento dos dados processuais; (7) direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo; (8) direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas».

Também a jurisprudência constitucional tem dedicado a sua atenção aos comandos derivados do artigo 20.º da CRP. Como se escreveu no recente Acórdão n.º 251/2017 (…):

«O Tribunal Constitucional tem ampla jurisprudência sobre o direito fundamental de acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição.

De acordo com essa jurisprudência «o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas» (cfr...

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