Acórdão nº 497/19 de Tribunal Constitucional (Port, 26 de Setembro de 2019

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução26 de Setembro de 2019
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 497/2019

Processo n.º 321/17

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão proferida por aquele Tribunal no dia 31 de janeiro de 2017 que julgou procedente ação administrativa especial intentada com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa, por naturalização, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade).

O tribunal recorrido desaplicou a norma decorrente daquele preceito e do artigo 19.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), «por violação do princípio da proporcionalidade, na dimensão de necessidade, previsto no artº 18º nº 2 do CRP, por ofensa [em violação do disposto no artº 18º nº 3 da CRP] do conteúdo essencial do preceito ínsito no nº 1 do artº 26º do CRP e por violação da proibição constitucional dos efeitos automáticos das penas criminais, consagrada no artº 30º nº 4 da CRP». Consequentemente, o Ministério Público interpôs recurso dessa decisão.

2. O Ministério Público junto deste Tribunal apresentou alegações de recurso, de que fez constar as seguintes conclusões:

«a) Objeto do recurso

1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para o mesmo obrigatório, “da douta sentença proferida nos autos à margem referenciados” [proc. n.º 730/14.0BELLSB, do TAC de Lisboa-UO 1], o qual tem por objeto “a recusa da aplicação da norma ínsita nas alíneas d) do n.º 1, do artº 6º da LN e d) do nº 1, do artº 19º do Regulamento de Nacionalidade, por serem inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade, na dimensão de necessidade, previsto no artº 18º nº 2 da CRP, por ofensa (em violação do disposto no artº 18º nº 3 da CRP) do conteúdo essencial do preceito ínsito no nº 1 do artº 26º da CRP e por violação da proibição constitucional dos efeitos automáticos das penas criminais, consagrada no artº 30º nº 4 da CRP”.

2.ª) Das fontes constitucionais relevantes não procede um “direito fundamental de acesso à cidadania portuguesa”, que esteja constitucionalmente determinado e seja, consequentemente, imediatamente aplicável pelos órgãos administrativos ou judiciais (arts. 4.º, 26.º, n.º 1, 164.º, al. f), e 166.º, n.º 2).

3.ª) O que tem base jurídica nessas fontes constitucionais, sim, é uma pretensão jurídica e uma imposição legiferante, ambas tendo como objeto o decretamento de lei (regime jurídico) regulando, de modo constitucionalmente conforme, o acesso à cidadania portuguesa.

4.ª) Por conseguinte, havendo já lei concretizadora, a presente questão de constitucionalidade redundará em determinar se as previsões normativas das disposições controvertidas, no caso em matéria das condições penais da obtenção da cidadania portuguesa, são conformes com as já mencionadas vinculações constitucionais.

b) Princípio da proporcionalidade

5.ª) “Não podem ser consideradas como de restrição aquelas hipóteses em que a Constituição remete para uma determinação legislativa autónoma a própria configuração do conteúdo dos direitos e garantias fundamentais” (VIEIRA DE ANDRADE).

6.ª) É esse precisamente o caso, pois aqui a Assembleia da República está constitucionalmente mandatada, por virtude da aludida imposição legiferante, para definir, constitutivamente, o conteúdo do “direito fundamental à cidadania portuguesa”.

7.ª) O “conteúdo essencial” (mínimo) passível de ser deduzido do teor dos artigos 4.º (puro reenvio para a lei e convenção internacional) e 26.º, n.º 1 (que se queda pela mera denominação do direito), é o de uma pretensão jurídica e imposição legiferante à emanação de lei (regime jurídico) regulando, de modo constitucionalmente conforme, o acesso à cidadania portuguesa, e isso não se está a negar ao recorrido.

8.ª) Quanto à questão do caráter geral (vinculado) ou casuístico (“discricionariedade administrativa”) da determinação dos antecedentes criminais que servem como indício da idoneidade do requerente, a lei constitucional não institui ou revela objetivamente qualquer critério, pelo que esta matéria vai necessariamente deferida à “liberdade de conformação” do legislador, ou seja, é matéria de escolha legal e não de decisão judicial.

9.ª) No caso em apreço, a opção legislativa por um critério de “cláusula geral” (vinculado), em detrimento de um critério “casuístico” (discricionário), pode ser abonado em impecáveis credenciais constitucionais, pois favorece um tratamento objetivo, igualitário e imparcial das pretensões de naturalização, o que mais dificilmente poderia ser conseguido por apreciações casuísticas ou de “discricionariedade administrativa”, as quais são naturalmente propícias a criar diversidade de tratamento, que se poderia revelar intolerável (art. 13.º, n.ºs 1 e 2).

10.ª) Por outra parte, a apreciação da idoneidade do requerente da nacionalidade, nomeadamente através de critérios penais, não é um domínio natural, inelutável e indiscutível, da “liberdade de escolha” da administração ― e dos juízos “subjetivos”, nomeadamente prognoses sobre “disposições pessoais” e do “âmbito de livre apreciação”, ainda que judicialmente fiscalizáveis, que lhe são intrinsecamente inerentes.

11.ª) Sendo certo, importa acrescentar, que a competência para fazer essa ponderação casuística já está prevista na lei, sendo deferida ao juiz penal da causa ou de execução das penas, os mais próximos das pessoas e dos factos em causa.

12.ª) Aliás, não são verdadeiramente alternativos os critérios da cláusula geral (vinculado) e casuístico (“discricionariedade administrativa”), pois têm subjacentes duas visões diferenciadas sobre o método preferível para apurar da idoneidade do requerente, que dependem assim de puras escolhas e preferências volitivas do legislador.

13.ª) Os tribunais, sob pena de ofensa do princípio constitucional de separação dos poderes, não se poderão substituir ao legislador em matéria de escolhas que, no seu âmago, relevam da pura política legislativa (art. 111.º, n.º 1).

14.ª) Em suma, as normas jurídicas controvertidas nem são restritivas, nem são “excessivas” ― no sentido em que, ceteris paribus quanto aos interesses públicos relevantes, não há solução alternativa que seja preferível, por menos intrusiva ou mais benigna para os interesses dos requentes ― sendo certo que promovem um tratamento igualitário dos casos e, finalmente, em nada precludem o normal funcionamento do regime jurídico da identificação criminal, pelo que não concorre violação do princípio constitucional da proporcionalidade.

c) Efeitos das penas e condenações criminais

15.ª) O caso em apreço não é passível de ser legitimamente imputado ao domínio de aplicação e ao espírito da proibição constitucional dos efeitos necessários (“automáticos”) das penas, a qual visa fulminar aquelas consequências que resultam inelutavelmente, sem mediação de um juízo autónomo de ponderação, que não tem de ser necessariamente judicial ou administrativo, da prévia aplicação de penas ou condenações.

16.ª) Do que se trata, em sede dos pressupostos escolhidos pelo legislador para a aquisição da nacionalidade portuguesa, por naturalização, não é de efeitos “automáticos” da “condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa” mas, antes, de uma escolha deliberada e de caso pensado do legislador, no âmbito da liberdade de conformação que lhe é constitucionalmente atribuída, em ordem a determinar da idoneidade do requerente à aquisição derivada da nacionalidade portuguesa.

17.ª) Não há, pois, aqui efeitos “automáticos” de uma prévia condenação, mas antes a eleição deliberada desses factos, em ato legislativo interposto e autónomo, como um dos pressupostos da norma jurídica de aquisição da nacionalidade portuguesa, por naturalização, certamente com a funcionalidade de determinar, objetivamente, a idoneidade do requerente à obtenção desse status da nacionalidade portuguesa.

18.ª) Por outra parte, o preceito em apreço, na sua letra, rege declaradamente em matéria de “perda de quaisquer direitos”, mas aqui não há verdadeiramente ablação, ou sequer atentado, a um direito de que o requerente fosse titular, pois que isso depende, precisamente, da verificação dos pressupostos legais para o efeito, o que não se verifica no caso.

19.ª) Finalmente, embora só por mera cautela de argumentação, sempre se dirá que as normas jurídicas controvertidas não materializam qualquer efeito perpétuo da prévia condenação definitiva, em sede penal, pois tal é postergado pela devida consideração a atribuir ao regime jurídico da identificação criminal, nomeadamente no que respeita aos certificados requeridos para fins diversos de emprego ou de exercício de atividade, quanto aos institutos do cancelamento definitivo, cancelamento provisório ou das decisões não transcritas.

20.ª) Portanto, as normas jurídicas controvertidas nem são subsumíveis no domínio de aplicação desta proibição constitucional, nem verdadeiramente consubstanciam ablação, ou sequer atentado, ao “direito fundamental à cidadania portuguesa”, nem precludem a aplicação do regime cessação de efeitos ou limitação do acesso à informação criminal, pelo que não há violação no caso vertente do denominado “princípio da não automaticidade dos efeitos das penas” (art. 30.º, n.º 4).

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