Acórdão nº 400/20 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Maria José Rangel de Mesquita
Data da Resolução13 de Julho de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 400/2020

3.ª Secção

Relatora: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa, em que é recorrente A., S.A., e recorrida a Autoridade Tributária e Aduaneira, a primeira interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada «LTC»), da decisão de 20 de maio de 2019, que julgou improcedente o pedido de declaração de ilegalidade da autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) relativa ao exercício de 2015 e do consequente indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela ora recorrente (cf. fls. 24-58).

2. O requerimento foi diretamente apresentado ao Tribunal Constitucional pela recorrente, não constando dos autos qualquer despacho de admissão do recurso proferido pelo Tribunal Arbitral constituído no âmbito do Centro de Arbitragem Administrativa. Em aplicação do princípio do aproveitamento processual dos atos, que decorre do direito à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), determinou a Relatora que os autos baixassem ao tribunal recorrido para que este se pronunciasse sobre a admissão do recurso interposto, conforme determina o n.º 1 do artigo 76.º da LTC (cf. fls. 142-143). O requerimento foi, então, admitido, por despacho do CAAD de 30 de setembro de 2019, com o seguinte teor (cf. fl. 147-verso):

«Por estar em tempo e ter legitimidade e preencher os demais requisitos a que se refere o artigo 75.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, que sobe nos próprios autos em certidão digital, com efeito suspensivo (artigos 78.º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional e 26.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária).

Explicita-se que as normas que são objecto de recurso de constitucionalidade são as dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código de IRC, na interpretação normativa identificada no § 3.º do requerimento de interposição de recurso, por terem sido essas as normas cuja constitucionalidade foi suscitada no processo (artigo 239.º da petição inicial) e sobre as quais o tribunal recorrido se pronunciou.»

3. Deste despacho, reclamou a recorrente, tendo apresentado as seguintes conclusões (cf. fls. 153-156v):

« CONCLUSÕES:

a) O despacho arbitral contra o qual se reclama não admitiu o recurso na parte que tem por objecto a norma do n.º 2 do artigo 350.° do Código Civil, na interpretação normativa de que "a intensidade da prova exigida para efeitos de elisão de presunção implícita nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do CIRC, qual seja a elisão de presunção de empresarialidade parcial dos gastos ou, na outra face da mesma moeda, de utilização pessoal dos gastos, seria a de que "não ocorra em caso algum utilização pessoal" e/ou (ii) "que se verifique que a utilização das viaturas seja, em termos permanentes e de modo exclusivo para finalidades próprias da atividade empresarial da Requerente".

b) Este critério normativo aplicado pela decisão arbitral recorrida que exige prova absoluta de factos negativos ("que não ocorra em caso algum utilização pessoal", etc.), prova diabólica humanamente impossível de realizar por esse standard, só surgiu no processo com a emissão da própria decisão arbitral.

c) Não sendo exigível às partes, c à recorrente em particular, que tivesse adivinhado de antemão a aplicação deste critério normativo particular sobre prova, acolhido na decisão arbitral e que tivesse, em abstracto, suscitado anteriormente a inconstitucionalidade do mesmo.

d) Donde, julga-se, a razoabilidade de se admitir o recurso interposto também contra esta inconstitucionalidade de critério normativo só vindo à baila na própria decisão arbitral.

e) Sob pena, aliás, de inutilidade deste recurso de inconstitucionalidade, e com prejuízo para o princípio da economia processual.

f) Com efeito, o tribunal recorrido já foi avisando na decisão arbitral recorrida, indo mais longe na discussão em que as partes estiveram envolvidas, que mesmo que se entenda haver uma presunção (elidível) nas normas nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.° do CIRC, o grau, o standard normativo exigido para a elisão da mesma é de tal ordem de exigência (a supra referenciada), que tal fasquia não foi atingida no caso concreto.

g) Nem, com a aplicação de tal standard ou fasquia normativa de exigência diabólica de prova, alguma vez será susceptível de elisão, acrescenta a recorrente (fora da hipótese de uma empresa que orwellianamente filme e grave em tempo real tudo o que os seus colaboradores, designadamente os carteiros, fazem, segundo a segundo).

h) E a isto se reconduz a segunda problemática constitucional suscitada no recurso interposto para o Tribunal Constitucional, complementar da primeira, e cuja não apreciação tornará in casu inútil a apreciação da primeira.

i) Segunda problemática esta que pelo exposto se crê não deve ficar arredada do objecto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.

TERMOS EM QUE DEVE A PRESENTE RECLAMAÇÃO SER ADMITIDA E ATENDIDA, COM A CONSEQUENTE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO INTERPOSTO TAMBÉM QUANTO À PARTE DO SEU OBJECTO REJEITADA PELO DESPACHO ARBITRAL RECLAMADO.

COM A CONSEQUENTE NOTIFICAÇÃO EM MOMENTO OPORTUNO PARA APRESENTAÇÃO DE ALEGAÇÕES.»

4. Recebido o recurso, tal como admitido pelo CAAD, foi proferida a Decisão Sumária n.º 863/2019 (cf. fls. 161-169), em que se decidiu não conhecer do respetivo objeto com os seguintes fundamentos (cf. II, 5. e segs.):

«5. Segundo jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, a admissibilidade do recurso apresentado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos: ter havido previamente lugar ao esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); tratar-se de uma questão de inconstitucionalidade normativa; a questão de inconstitucionalidade normativa haver sido suscitada «durante o processo» e «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC); e a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionalidade pelo recorrente (mais recentemente, v., v.g., os Acórdãos deste Tribunal n.os 344/2018, 640/2018, 652/2018, 658/2018, 671/2018, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Faltando um destes requisitos, o Tribunal não pode conhecer do recurso, ainda que este tenha sido admitido pelo tribunal a quo. Tal como prescreve o n.º 3, do artigo 76.º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, pelo que se deve antes de mais apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos na LTC. Caso o Relator verifique que algum, ou alguns deles, não se encontram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme previsto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.

6. Cabendo aos recorrentes delinear o objeto do recurso (norma ou interpretação normativa cuja inconstitucionalidade pretendem ver apreciada), a aferição do preenchimento dos requisitos de que depende a admissibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e, bem assim, a delimitação do objeto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade devem ter por base o invocado no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e reportar-se à decisão recorrida (ou decisões recorridas), tal como identificada(s) pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso e que fixam o respetivo objeto.

No requerimento de interposição de recurso, a recorrente enunciou duas questões de constitucionalidade, nos seguintes termos:

i) inconstitucionalidade dos n.os 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, «interpretadas no sentido de que não integram presunção (i) de uso pessoal ou privado, maxime pelos trabalhadores e colaboradores da empresa, dos veículos a que se referem os encargos tributados, e de abonos quilométricos acima do custo incorrido pelo trabalhador ao serviço da empresa, cuja prova em contrário deva ser admitida»;

ii) «[i]nconstitucionalidade da norma constante do n.º2 do artigo 350.ºdo Código Civil, interpretada como dela se extraindo o critério normativo de que a intensidade da prova exigida para efeitos de elisão de presunção implícita nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do CIRC, (…) seria o de que "não ocorra em caso algum utilização pessoal" e/ou (ii) "que se verifique que a utilização das viaturas seja, em termos permanentes e de modo exclusivo para finalidades próprias da atividade empresarial da Requerente"» (sublinhado, no original).

Uma vez que o tribunal a quo decidiu admitir o recurso apenas quanto à primeira questão (cf. supra, I, 4) – e que a reclamação apresentada pela recorrente desta decisão será tramitada nos termos do artigo 77.º da LTC – cumpre, apenas, apreciar se essa (primeira) questão pode ser conhecida por este Tribunal.

7. Na verdade, resulta dos autos que a questão vinda de enunciar não corresponde rigorosamente à que foi suscitada perante o tribunal a quo – e que se cingia à impossibilidade de ilidir a presunção que a recorrente pressupôs implicitamente consagrada na norma (cf., v.g., a fl. 91).

Diante do tribunal recorrido, a recorrente pugnou pela adoção de uma interpretação que considera ser a que...

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